O direito no século XIX: a questão social
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O limiar do século XX trouxe consigo o fardo e a herança de complexos movimentos ideológicos e sociais oriundos do século XIX. Do ponto de vista jurídico, duas grandes heranças são notáveis e deixam seu legado no novo século, moldando, de forma contundente, o direito contemporâneo.
a. Legalidade liberal
- Estado liberal: Este período é marcado pelo surgimento e consolidação do Estado liberal, que favorece o individualismo, a liberdade econômica e os direitos individuais como marcas principais. O Estado liberal é menos interventor e mais garantidor de liberdades.
- Separação de Poderes: Um princípio fundamental do Estado liberal é a Separação de Poderes, proposta por Montesquieu. A ideia é que os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – operem independentemente para garantir checks and balances, impedindo a concentração de poder e preservando as liberdades individuais.
- Legalismo e lógica dedutiva: Esta corrente defende que o direito é um sistema fechado, onde, a partir de premissas gerais, podem-se deduzir soluções específicas para cada caso. O Código Civil francês de 1804, também conhecido como Código Napoleônico, é um exemplo clássico deste tipo de abordagem jurídica. Seus artigos são estruturados de forma lógica e dedutiva, e foram amplamente adotados por muitos outros países.
b. Questão social
- Movimentos dos trabalhadores: Com a Revolução Industrial, surge uma nova classe de trabalhadores urbanos sujeitos a condições de trabalho deploráveis. Esse contexto dá origem a movimentos trabalhistas e sindicatos, que começam a exigir melhores condições de trabalho, salários mais justos e reconhecimento de seus direitos.
- Luta por direitos sociais: Os movimentos dos trabalhadores não apenas lutavam por melhores condições de trabalho, mas também por uma série de direitos sociais, como o direito à educação, à saúde, à habitação, entre outros. Essa luta representa uma contraposição ao legalismo liberal, buscando uma nova legalidade que contemple a justiça social.
- Por uma nova legalidade: A crescente insatisfação social, culminando com revoltas e greves em diversos lugares do mundo, coloca em xeque a eficiência do legalismo liberal. Muitos juristas e pensadores começam a perceber que a lógica dedutiva e a neutralidade do Estado são insuficientes para resolver os problemas sociais emergentes. Há uma demanda crescente por uma legislação mais adaptada à realidade social, que possa mediar conflitos e promover justiça social.
O direito do início do século XX é, portanto, um palco de tensão entre essas duas heranças: por um lado, o legado do legalismo liberal, com sua ênfase na liberdade individual e na lógica dedutiva, e por outro, as demandas emergentes da questão social, que clamam por uma nova legalidade e pela incorporação de direitos sociais. Essa dualidade vai definir as principais disputas jurídicas e ideológicas do século que se inicia.
2. Deontologia
Originando-se do grego “deon” (dever) e “logos” (estudo), a deontologia refere-se ao estudo dos deveres e das obrigações éticas inerentes a determinadas profissões. No contexto jurídico, a deontologia ganhou destaque como uma resposta às limitações percebidas no legalismo dedutivo típico do século XIX.
A Influência da Deontologia nas Correntes Jurídicas
- A ascensão da deontologia no século XIX trouxe consigo uma nova maneira de compreender e praticar o direito. Em vez de simplesmente derivar soluções jurídicas de princípios gerais de forma dedutiva, como proposto pelo legalismo liberal, a deontologia enfatizava o papel moral e ético do direito. O direito passa a ser visto não apenas como um conjunto de normas a serem aplicadas, mas como um instrumento que deve ser utilizado de maneira ética e justa.
A Limitação da Lógica Dedutiva
- Jeremy Bentham, filósofo e jurista britânico, foi um crítico da lógica dedutiva no direito. Ele argumentava que a aplicação estrita da lógica matemática ao direito era falha, pois ignorava as complexidades e nuances da realidade social. Bentham propôs, em vez disso, uma abordagem mais pragmática e utilitarista do direito, onde o principal objetivo seria a promoção da maior felicidade para o maior número de pessoas.
- A deontologia reforça essa crítica, alegando que a lógica dedutiva matemática não se aplicaria ao direito, visto que este é uma ciência do “dever ser”, focada em obrigações morais e éticas. A aplicação da lei não deve ser uma simples dedução de princípios, mas deve ser guiada por considerações éticas e pelo bem-estar da sociedade.
Exemplo Prático
- Consideremos, por exemplo, a profissão do advogado. Sob uma perspectiva estritamente legalista, o papel do advogado seria simplesmente representar os interesses de seu cliente, independentemente das implicações morais ou sociais. No entanto, sob uma ótica deontológica, o advogado tem também um dever ético de promover a justiça, de agir com integridade e de considerar o bem-estar da sociedade. Isso pode, em certos casos, entrar em conflito com os interesses imediatos do cliente.
Conclusão
A deontologia, portanto, representa uma evolução no pensamento jurídico, destacando a importância da ética e da moralidade na prática do direito. Ela desafia a noção de que o direito é um sistema fechado de regras dedutivas e propõe uma visão mais aberta, adaptável e orientada para a justiça. Isso teve implicações profundas na formação de juristas e na prática jurídica ao longo do século XX.
3. Primeira Guerra Mundial (1914)
A Primeira Guerra Mundial, muitas vezes referida como a “Grande Guerra”, foi um conflito que eclodiu em 1914 e se estendeu até 1918, envolvendo quase todas as grandes potências globais da época. Sua magnitude e brutalidade tiveram um impacto profundo não apenas na história política e social, mas também na maneira como o direito foi percebido e aplicado. Vamos mergulhar em seus efeitos jurídicos:
Abalo à Estrutura Liberal e ao Direito
- A guerra desafiou a própria estrutura do pensamento liberal. As nações que se orgulhavam de seus sistemas democráticos e liberais encontraram-se mergulhadas em um conflito que desafiou esses ideais. Os sistemas jurídicos, então baseados na legalidade liberal, tiveram que se adaptar a circunstâncias excepcionais, como a instauração de leis marciais e a suspensão de certos direitos civis.
- O tratado de paz subsequente, o Tratado de Versalhes, é um exemplo marcante de como o direito internacional tentou responder à destruição da guerra. Embora tenha buscado estabelecer uma paz duradoura, é amplamente reconhecido que suas estipulações punitivas contribuíram para as tensões que eventualmente levaram à Segunda Guerra Mundial.
Questão da Autodeterminação Nacional
- Um dos princípios fundamentais que emergiu no período pós-guerra foi o da autodeterminação nacional, popularizado pelo presidente dos EUA, Woodrow Wilson. Esse princípio defendia que os povos deveriam ter o direito de decidir seu próprio destino, particularmente em relação à sua soberania e afiliação política.
- Exemplo: A dissolução do Império Austro-Húngaro pós-Primeira Guerra Mundial levou à criação de novos estados nacionais na Europa Central, como Tchecoslováquia e Hungria. Essas nações nasceram com base no princípio de autodeterminação.
- No entanto, a aplicação deste princípio foi inconsistente e, muitas vezes, politicamente motivada. Por exemplo, enquanto a autodeterminação foi promovida na Europa Central e nos Bálcãs, ela foi largamente ignorada nas colônias africanas e asiáticas dos impérios europeus.
Conclusão
A Primeira Guerra Mundial não foi apenas um conflito militar, mas também uma crise jurídica. Ela desafiou as noções pré-existentes de soberania, direitos humanos e legalidade. O direito teve que se adaptar a um mundo em rápida transformação, onde antigas certezas foram substituídas por novas realidades. A resposta do mundo jurídico a esses desafios ajudou a moldar o cenário internacional do século XX e ainda reverbera nos debates jurídicos e políticos de hoje.
4. Legalidade Social
O conceito de legalidade social surgiu como uma resposta direta à crescente demanda por direitos sociais e econômicos no início do século XX. Esta evolução representou uma ruptura com o paradigma legalista tradicional, que, até então, focava predominantemente nos direitos civis e políticos. Vamos explorar mais a fundo essa mudança e sua influência no cenário jurídico do início do século XX.
Incorporação dos Direitos Sociais nas Constituições
- México (1917): A Constituição Mexicana de 1917 foi pioneira em sua abordagem ao incorporar direitos sociais e econômicos. Estes incluíram direitos dos trabalhadores (como a jornada de trabalho de 8 horas e o direito à greve) e a reforma agrária, que buscou redistribuir terras de grandes latifundiários para pequenos agricultores.
- Alemanha (1919): A Constituição de Weimar da Alemanha em 1919 representou outro marco. Ela não apenas reconheceu os direitos tradicionais, mas também os direitos sociais e culturais, como o direito à educação e à cultura. Isso refletiu a compreensão de que a verdadeira igualdade não se limitava apenas aos direitos civis, mas também dependia do bem-estar socioeconômico.
Ampliação do Paradigma Liberal
- A incorporação dos direitos sociais e econômicos significou uma expansão do paradigma liberal clássico. Os direitos não eram mais vistos apenas como proteções contra a intervenção estatal, mas também como obrigações positivas do Estado em promover o bem-estar dos cidadãos.
- Isso levou a uma redefinição da relação entre o indivíduo e o Estado, na qual o último não era mais visto apenas como um árbitro, mas também como um provedor.
Início do Intervencionismo Estatal de Cunho Constitucional
- Com a emergência da legalidade social, o papel do Estado tornou-se mais ativo na economia e na sociedade. Os governos começaram a promulgar leis que regulavam as relações de trabalho, protegiam os direitos dos consumidores e garantiam acesso à saúde e educação.
- Exemplo: Muitos países introduziram sistemas de seguridade social, assegurando proteção contra desemprego, doença e velhice. A ideia era que, ao fornecer uma rede de segurança, o Estado poderia garantir uma melhor qualidade de vida e, assim, estabilizar a ordem social.
Conclusão
A legalidade social representou uma transformação profunda no entendimento do papel do direito e do Estado no início do século XX. Reconhecendo as desigualdades intrínsecas ao capitalismo liberal e as demandas crescentes dos movimentos trabalhistas e sociais, os países começaram a adaptar seus sistemas legais e constitucionais. Esta era de transformação lançou as bases para muitos dos sistemas de bem-estar social que vemos hoje e redefiniu a relação entre o Estado, o direito e os cidadãos.
5. Revolução Russa (1917)
A Revolução Russa de 1917, sem dúvida, é um dos eventos mais significativos do século XX, marcando uma reviravolta não apenas na história da Rússia, mas em toda a política global e na evolução do pensamento jurídico.
a. Noção
A Revolução Russa não foi um evento singular, mas uma série de revoltas que culminaram na derrubada da autocracia czarista e na ascensão dos bolcheviques ao poder. Esta revolução prometia o fim das injustiças, das desigualdades e da exploração, baseando-se em princípios marxistas-leninistas. Visava criar uma sociedade sem classes, onde os meios de produção seriam de propriedade coletiva, e onde os valores humanos e a solidariedade prevaleceriam sobre o individualismo e o capitalismo.
b. Inovações Jurídicas Soviéticas (1917-1930)
Nacionalização da Propriedade: No contexto pós-revolucionário, vastas extensões de terra, indústrias e bancos foram nacionalizados. A propriedade privada foi substancialmente limitada, com a ideia de promover o bem-estar coletivo e impedir a acumulação de riqueza nas mãos de poucos.
Função Social-Econômica das Relações do Direito Privado: O Código Civil de 1922 refletiu o novo ethos, onde as relações jurídicas foram direcionadas a servir a um propósito social e econômico mais amplo.
Direito ao Trabalho: O Estado socialista assegurou o emprego para todos os cidadãos, considerando-o tanto um direito quanto um dever.
Proteção ao Trabalho Feminino: Mulheres receberam direitos iguais no trabalho, e medidas foram implementadas para protegê-las, como licenças maternidade.
Igualdade Familiar: O Código Familiar de 1918/26 estabeleceu a igualdade entre homens e mulheres no casamento. O direito ao divórcio foi facilitado e ambos os pais receberam autoridade igual na criação dos filhos.
Direito ao Aborto: Em 1920, a Rússia tornou-se o primeiro país do mundo a legalizar o aborto.
Direito Penal Ressocializador: A abordagem soviética ao direito penal era fundamentada na crença de que o crime era um produto da desigualdade social. Assim, a pena não era vista como retribuição, mas como uma forma de reeducação.
Descriminalização do Homossexualismo: Em 1922, a Rússia despenalizou relações homossexuais, vendo-as mais como uma patologia do que uma perversão moral.
Busca pela Erradicação da Prostituição: A prostituição era vista como um subproduto da pobreza e do capitalismo, e esforços foram feitos para erradicá-la através da educação e reeducação.
Autodeterminação dos Povos: A Revolução Russa também endossou o princípio da autodeterminação, uma visão compartilhada com os EUA após a Primeira Guerra Mundial.
Planejamento Econômico: A economia soviética era caracterizada por um planejamento centralizado, com o objetivo de alcançar a igualdade social e o desenvolvimento.
Lei Como Agente Transformador da Realidade: No ethos soviético, a lei não era apenas um conjunto de regras, mas uma ferramenta para transformar a sociedade e construir o comunismo.
Conclusão
A Revolução Russa trouxe uma profunda reestruturação das relações sociais, políticas e jurídicas, apresentando ao mundo um modelo alternativo ao capitalismo liberal. Enquanto as inovações jurídicas soviéticas tiveram seus detratores e críticos, elas indubitavelmente desafiaram e expandiram as noções convencionais de direito e justiça no século XX.