O direito no século XIX: urbanização e direito liberal
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A Revolução Industrial, que começou na Inglaterra no século XVIII e espalhou-se pela Europa no século XIX, trouxe profundas mudanças econômicas, sociais e culturais. No entanto, apesar do crescimento industrial explosivo, em 1850, a população rural ainda predominava na Europa, um reflexo de como a modernização levou tempo para penetrar em todas as camadas da sociedade.
A explosão populacional foi uma das mais evidentes consequências desse período. Fatores como casamentos mais precoces e frequentes, o barateamento de alimentos devido a novas técnicas agrícolas e a queda na taxa de mortalidade, graças à melhoria das condições sanitárias e avanços na medicina, levaram a um rápido crescimento demográfico. Por exemplo, a Irlanda viu sua população saltar de 5,5 milhões para 8 milhões, e a Rússia experimentou um aumento de 39 milhões para 60 milhões em apenas algumas décadas.
No entanto, esse aumento populacional não se traduziu em prosperidade para todos. Muitos camponeses enfrentaram a miséria devido ao surgimento do capitalismo agrícola. Propriedades foram reestruturadas, e o tradicional camponês, que antes cultivava o que precisava, foi expulso. Em muitos lugares, vastos campos antes cheios de diversidade agrícola foram transformados em pastos de ovelhas ou vastas monoculturas, como o algodão ou o trigo. Um exemplo emblemático é o fenômeno dos “enclosures” na Inglaterra, onde terras comunais foram cercadas, beneficiando os grandes proprietários e marginalizando os pequenos agricultores.
A consequência direta foi um êxodo rural em massa. Milhares de trabalhadores, agora sem terras, foram em busca de emprego nas crescentes cidades industriais. No entanto, essa migração maciça resultou em cidades superlotadas e despreparadas para absorver tal contingente. Londres, Manchester, Paris e outras metrópoles europeias tornaram-se caldeirões de poluição, com o ar carregado de fuligem e rios contaminados. A falta de saneamento básico e as péssimas condições de moradia, como as famosas “favelas” de Londres, exacerbaram a disseminação de doenças.
Entretanto, os governos europeus não permaneceram passivos diante dessa situação caótica. A partir de 1850, iniciaram-se esforços para melhorar as condições sanitárias. Londres, por exemplo, empreendeu uma gigantesca obra de saneamento após o “Grande Fedor” de 1858, um evento onde o rio Tâmisa estava tão poluído que se tornou um risco à saúde pública.
Todavia, mesmo com essas melhorias, a instabilidade econômica trazida por depressões e ciclos econômicos deixava muitos desamparados. Durante as recessões, era comum que trabalhadores ficassem semanas ou até meses desempregados, e na ausência de um sistema assistencial ou de segurança social, muitos eram deixados à própria sorte.
Em resumo, o século XIX foi um período de contrastes agudos. Enquanto a Revolução Industrial trouxe progresso e riqueza para alguns, também gerou desigualdade, miséria e deslocamento para muitos. O direito e as instituições da época tiveram que se adaptar rapidamente a essa nova realidade, buscando equilibrar os interesses do capital e do trabalho, e garantir que os benefícios do progresso fossem compartilhados de forma mais justa pela sociedade.
2. A Questão Social
A Revolução Industrial não só alterou a estrutura da produção como também a vida das pessoas, especialmente da classe trabalhadora. A “questão social” do século XIX refere-se, em grande parte, às condições de vida da crescente classe trabalhadora urbana e à resposta da sociedade a essas condições.
A Vida dos Trabalhadores Urbanos
A classe trabalhadora urbana era extremamente diversificada. Incluía desde artesãos tradicionais, que preservaram suas práticas e autonomia, a proletários industriais que operavam máquinas em fábricas e eram submetidos a ritmos de trabalho rigorosos. Além desses, havia uma vasta população de subempregados, muitas vezes envolvidos em trabalhos ocasionais e mal remunerados.
A vida para muitos trabalhadores oscilava entre o desconfortável e o insuportável. As habitações eram frequentemente apertadas e insalubres. Em Londres, por exemplo, era comum várias famílias compartilharem uma mesma casa, ou até mesmo um único cômodo, em áreas conhecidas como slums ou favelas. Estas áreas eram marcadas por sua falta de saneamento adequado, com esgoto a céu aberto e pouco acesso a água limpa.
Vida das Mulheres
As mulheres enfrentavam desafios duplos: a responsabilidade pelo lar e os filhos, e, frequentemente, a necessidade de trabalhar fora de casa para complementar a renda da família. A maternidade era quase constante, mas as taxas de mortalidade infantil eram altas. As mulheres muitas vezes trabalhavam em empregos mal remunerados e em condições precárias, como as “match girls” em Londres, que trabalhavam com substâncias tóxicas nas fábricas de fósforos.
Condições de Trabalho
A jornada de trabalho durante o século XIX era extenuante, muitas vezes chegando a 12 a 14 horas por dia, seis dias por semana. O ritmo era ditado pelo “apito” da fábrica, e não pelo trabalhador. Havia pouco ou nenhum regulamento de segurança, o que tornava o ambiente de trabalho perigoso.
Era comum o emprego de mulheres e crianças, recebendo salários menores do que os dos homens. Na Inglaterra, por exemplo, crianças de até seis anos de idade eram encontradas trabalhando em minas de carvão e fábricas têxteis. Essas condições levaram a uma série de legislações, como a Lei das Fábricas de 1833 na Inglaterra, que procurava limitar as horas de trabalho das crianças e estabelecer algum grau de regulamentação.
Impacto Social
Diante de tais condições de vida, não era incomum que os homens buscassem alívio na bebida, enquanto algumas mulheres eram forçadas à prostituição para garantir a sobrevivência de suas famílias. Isso, por sua vez, alimentava um ciclo de pobreza e desespero.
A Ideologia Dominante
No contexto dessa realidade dura e muitas vezes desumana, predominava a ideologia liberal que via a pobreza como resultado da preguiça ou da falta de caráter. Essa visão era desafiada pelas repetidas crises econômicas, que lançavam vastas quantidades de trabalhadores no desemprego involuntário, mostrando claramente que o capitalismo, como estava estruturado, não conseguia prover emprego estável e vida digna para todos.
Em resumo, o tópico da “questão social” no século XIX é inseparável das transformações radicais trazidas pela Revolução Industrial. A nova classe trabalhadora, que emergiu em resposta às demandas da produção industrial, enfrentou condições de vida precárias e instáveis, que se tornaram centrais para os debates políticos e sociais da época. Este cenário acabou sendo um dos principais estopins para o surgimento de movimentos trabalhistas e socialistas, que buscavam uma redistribuição mais equitativa dos frutos do trabalho e uma reforma nas estruturas de poder da sociedade.
3. Movimentos Socialistas
No contexto da Revolução Industrial do século XIX, os desafios enfrentados pela classe trabalhadora geraram uma série de respostas ideológicas e políticas. Entre as mais significativas estava o surgimento de movimentos socialistas, que buscavam formas alternativas de organizar a sociedade e a economia. Este período viu o nascimento de várias correntes socialistas, cada uma com suas próprias propostas e características.
Socialistas Utópicos
Robert Owen (1771-1858), um industrial galês, é frequentemente considerado um dos pioneiros do socialismo utópico. Ele acreditava que mudanças no ambiente de trabalho poderiam transformar o caráter humano. Owen experimentou essas ideias na sua fábrica de algodão em New Lanark, Escócia, onde melhorou as condições de trabalho e vida dos trabalhadores, reduziu a jornada de trabalho e proibiu o trabalho infantil. Ele também tentou estabelecer comunidades cooperativas nos Estados Unidos, as quais chamou de “Novas Harmonias”.
Charles Fourier (1772-1837), um pensador francês, desenvolveu uma crítica mordaz ao capitalismo industrial e à estrutura social da sua época. Ele propôs a criação de comunidades chamadas “falanstérios”, onde as pessoas viveriam e trabalhariam juntas em um ambiente cooperativo e igualitário.
O Manifesto Comunista
Em 1848, Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) publicaram o Manifesto Comunista, que oferecia uma análise crítica do capitalismo e propunha uma revolução liderada pela classe trabalhadora. Ao contrário dos socialistas utópicos, que focavam em criar comunidades modelo, Marx e Engels argumentavam pela necessidade de uma transformação radical e global da sociedade. Eles defendiam a união internacional dos trabalhadores para promover a Revolução Socialista, que colocaria os meios de produção nas mãos da classe trabalhadora, inaugurando uma nova era de igualdade e justiça social.
A Primeira Internacional
A Associação Internacional dos Trabalhadores, comumente conhecida como a Primeira Internacional, foi fundada em Londres em 1864. Esta organização tinha como objetivo unir os trabalhadores de diferentes países na luta contra o capitalismo e pela instauração de uma sociedade socialista.
Karl Marx desempenhou um papel significativo nesta organização, especialmente na redação de seus estatutos, e usou a Internacional para promover suas ideias sobre a necessidade de os trabalhadores conquistarem o poder político. A Primeira Internacional incluía uma mistura de socialistas, anarquistas e sindicalistas, e, apesar das frequentes divisões internas, desempenhou um papel importante na coordenação das lutas dos trabalhadores em vários países. A Internacional desapareceu em 1876, em parte devido às disputas internas entre os marxistas e os anarquistas.
O Impacto dos Movimentos Socialistas
Pela primeira vez na história, o trabalhador foi colocado no centro do processo histórico como agente social e político. O movimento socialista do século XIX estabeleceu as bases para as futuras organizações políticas e sindicais da classe trabalhadora e influenciou profundamente as políticas públicas, incluindo a adoção de leis trabalhistas e de bem-estar social em muitos países.
Em resumo, o século XIX foi marcado pelo surgimento e consolidação de diversos movimentos socialistas, que variaram de comunidades utópicas a movimentos políticos revolucionários. Esses movimentos foram fundamentais para a formação de uma consciência de classe entre os trabalhadores e para a promoção de uma série de reformas que buscavam uma distribuição mais equitativa da riqueza e do poder. Eles constituem uma resposta direta à “questão social” que emergiu com a Revolução Industrial e continuam a ser uma parte fundamental da paisagem política até os dias de hoje.
4. Surgimento dos Direitos Sociais
Contexto Histórico:
O século XIX foi marcado por grandes transformações sociais decorrentes da Revolução Industrial. Enquanto a industrialização trouxe prosperidade para alguns, ela também exacerbou a pobreza e a desigualdade para uma grande parte da população. Neste contexto, o Estado começou a intervir de maneira mais significativa na vida econômica e social, sinalizando um afastamento do legalismo liberal que predominou no início do século.
Reformas na Inglaterra:
- Lei da Reforma Parlamentar (1832): Essa lei expandiu o direito ao voto, mas ainda com base em critérios econômicos. Representou um passo significativo para o aumento da participação política da classe média, embora os trabalhadores em geral ainda estivessem largamente excluídos.
- Nova Lei dos Pobres (1834): Foi uma resposta à inadequação da Lei de 1602. Esta reforma pretendia tornar a vida sob assistência pública tão desagradável que apenas os verdadeiramente desesperados recorreriam a ela. Ela criou os “workhouses”, onde os pobres eram submetidos a condições de trabalho quase prisionais.
- Leis Humanitárias (1840s): Em resposta às depressões econômicas que mostraram que o capitalismo não conseguia empregar todos os trabalhadores, e às agitações da classe trabalhadora, o governo britânico aprovou leis para melhorar as condições dos trabalhadores. Um exemplo notável foi a lei que reduziu a jornada de trabalho para 10 horas em alguns ofícios (1847).
Agitações Sociais na França:
- Revolução de 1848 e as Oficinas Nacionais: Esta revolução marcou a emergência de demandas por direitos sociais na França. As Oficinas Nacionais foram um programa de obras públicas que empregou milhares de trabalhadores desempregados.
- Governo de Luís Bonaparte: Quando se tornou presidente e, posteriormente, imperador, Napoleão III (Luís Bonaparte) tomou medidas significativas no campo social. Ele introduziu programas de assistência médica e hospitalar gratuita, além de legalizar sindicatos e greves.
- A Comuna de Paris (1871): Foi um breve período em que Paris foi governada por um governo socialista revolucionário. Embora a Comuna tenha durado pouco, suas ideias sobre a distribuição da propriedade privada e a necessidade de medidas significativas para reduzir a desigualdade tiveram um impacto duradouro.
Consequências:
A crescente pressão dos movimentos trabalhistas, juntamente com as lições aprendidas com as depressões econômicas e os períodos de agitação social, levou os governos a reconhecerem a necessidade de proteger os cidadãos contra os excessos e as falhas do mercado. Isso marcou o início de um longo processo pelo qual os direitos sociais foram gradativamente reconhecidos e incorporados nas legislações nacionais.
Resumo:
O surgimento dos direitos sociais foi uma resposta crítica e necessária às desigualdades exacerbadas pela Revolução Industrial e pelo capitalismo do século XIX. Esses direitos representaram uma profunda ruptura com a lógica do legalismo liberal, introduzindo uma nova concepção de cidadania e de papel do Estado.
5. Conclusão – A Antítese do Legalismo Liberal
Crise do Legalismo Liberal:
O século XIX, especialmente sua segunda metade, foi marcado por uma crescente crise do legalismo liberal, um sistema no qual acreditava-se que o Estado deveria interferir minimamente na sociedade e na economia. A ideia de que os mercados funcionariam melhor sem a interferência do Estado começou a ser desafiada devido às severas desigualdades e aos problemas sociais gerados pela Revolução Industrial.
Conquista dos Direitos Sociais:
- Os direitos sociais emergem como uma antítese necessária ao legalismo liberal. São conquistas que surgem da pressão dos movimentos sociais e operários, que exigem uma vida mais digna e justa.
- Os direitos sociais não foram presentes oferecidos pelo Estado, mas sim conquistas resultantes de intensas lutas sociais. Por exemplo, o direito à jornada de trabalho de 8 horas foi fruto de mobilizações e greves de trabalhadores em várias partes do mundo.
- Gradativamente, esses direitos foram sendo reconhecidos e incorporados nas legislações nacionais, marcando um papel mais ativo e interventor do Estado na vida social e econômica.
Definição de Direito Social:
Os direitos sociais são concebidos como diretrizes para a atuação do Estado no sentido de garantir condições de vida dignas a todos os cidadãos. Eles incluem o direito à educação, à saúde, à habitação, à alimentação, ao trabalho digno, à segurança, à cultura, ao lazer e à previdência social, entre outros.
Exemplos de Direitos Sociais:
- Função Social da Propriedade: Esta noção reconhece que a propriedade privada deve cumprir uma função que beneficie a coletividade e não apenas o proprietário. Por exemplo, no Brasil, a Constituição de 1988 introduziu este conceito, que tem sido aplicado em casos de reforma agrária.
- Função Social dos Contratos: Isso levou ao surgimento do Direito do Trabalho e, posteriormente, do Direito do Consumidor. A função social dos contratos rejeita a ideia de que os contratos são meramente acordos entre partes iguais e reconhece que eles têm implicações mais amplas para a justiça e a equidade na sociedade.
- Direito à Educação e à Saúde: Esses direitos, que são fundamentais em muitas constituições ao redor do mundo, requerem que o Estado provê serviços educacionais e de saúde de qualidade a todos os cidadãos, independentemente de sua capacidade de pagamento.
Significado Histórico e Atualidade:
- O reconhecimento dos direitos sociais representa uma profunda mudança na relação entre Estado, sociedade e indivíduo. Ele desloca o foco do liberalismo clássico, centrado nos direitos individuais e na não intervenção do Estado, para uma compreensão de que o Estado tem um papel ativo a desempenhar na promoção do bem-estar social.
- Na atualidade, os direitos sociais continuam a ser um campo de batalha importante em muitos países. Por exemplo, debates sobre o direito à saúde universal e gratuita estão no centro das discussões políticas em países como os Estados Unidos.
Resumo:
A consolidação dos direitos sociais representou uma antítese significativa ao legalismo liberal, que predominou no início do século XIX. Este movimento não só redefiniu o papel do Estado, que passou a ser visto como um agente responsável por garantir o bem-estar social, mas também reconfigurou a compreensão da cidadania, que passou a incorporar uma série de direitos sociais fundamentais. Essas transformações foram fruto de intensas lutas sociais e marcaram um ponto de inflexão na história, estabelecendo os fundamentos para o Estado de bem-estar social que caracterizaria grande parte do século XX em muitos países.