Fontes formais imediatas do direito – negociais e racionais
22/09/2011Filosofia Moderna: transição, marcos, capitalismo e política
24/09/2011Quatro conceitos distintos, ainda que ligados, podem aplicar-se às normas jurídicas: validade,vigência, vigor e eficácia. A validade indica que a norma pertence ao ordenamento jurídico, pois foi criada por autoridade competente, veiculada por instrumento adequado e relaciona-se de modo coerente com as demais normas jurídicas superiores. A vigência indica que a norma pode, em tese, produzir efeitos. O vigor, por sua vez, é a força obrigatória de uma norma. Uma norma com força obrigatória pode ser socialmente respeitada, possuindo, então, eficácia.
Em tese, uma norma pode tornar-se válida mas não possuir vigência e vigor. Isso ocorre se houver um “período de vacância” entre a data de sua publicação e o início de sua produção de efeitos. Quando a norma torna-se vigente, adquire vigor, pois ganha força obrigatória ante as pessoas e os agentes públicos. Se a norma for seguida, produzirá seus efeitos (terá eficácia).
Podemos admitir que, como regra geral, o vigor de uma norma coincide com o período de sua vigência. A essa coincidência chamamos atividade da norma. Se uma norma deixa de ser vigente, mas continua a possuir vigor, afirmamos que houve ultratividade. Isso ocorre porque a norma que perdeu a vigência pode continuar a ser obrigatória para aquelas situações consolidadas sob seu império, as quais sempre serão regidas por ela.
Será que uma nova norma jurídica pode projetar seu vigor para o passado? Em outras palavras, será que uma norma jurídica pode modificar situações que ocorreram antes de ela existir?
Essa projeção do vigor de uma norma jurídica para o passado chama-se retroatividade. Abstratamente falando, nada impediria que a autoridade criadora de uma norma jurídica escolhesse dar a ela vigor retroativo (diríamos que a norma possui efeitos retroativos). Com isso, fatos ocorridos antes da positivação da norma também deveriam adaptar-se a seu teor. Situações consolidadas precisariam ser desfeitas ou refeitas.
O grande problema de uma norma retroagir está na insegurança jurídica a ser instaurada. As pessoas não mais praticariam atos jurídicos com a certeza de que o resultado de suas ações estaria protegido pelo ordenamento, pois poderia sofrer as consequências de uma nova norma a qualquer momento. Isso desestimularia a vida social num contexto de economia capitalista, na qual o cotidiano é permeado pela celebração e execução de contratos de consumo e de trabalho. Para evitar esse risco, alguns ordenamentos proíbem ou limitam a retroatividade das normas jurídicas.
Se pensarmos numa fonte específica de normas jurídicas, a lei, constataremos que o tempo de seu vigor é regido por algumas regras em nosso ordenamento jurídico. A Constituição Federal, no artigo 5º, XXXVI, protege três situações afirmando que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Isso significa que essas três situações, uma vez consolidadas sob o império de uma lei, não serão mais modificadas por outras leis posteriores.
Tal preceito é repetido pelo art. 6º da LID, que acrescenta mais uma determinação: “a lei em vigor terá efeito imediato e geral”. Cria-se uma regra relativamente ao vigor da lei: ele coincide com o início de sua vigência, projetando-se do presente para o futuro. Ou seja, as leis brasileiras são irretroativas, pois não projetam seu vigor para o passado, sendo esse vigor imediato.
Nada impede, contudo, que uma lei mais recente do que a LID modifique o critério da irretroatividade, determinando que seus efeitos projetem-se para o passado. Se o fizer, a nova lei terá, contudo, que respeitar o limite das três situações imposto pela Constituição. Como essa limitação está no art. 5º, podemos sustentar que se trata de uma escolha do Poder Constituinte Originário. Assim, não pode ser abolida nem pelo Poder Constituinte Derivado e suas Emendas, nem pelo poder legislativo e suas leis.
Os parágrafos do art. 6º da LID contêm normas secundárias de reconhecimento: definem ato jurídico perfeito, coisa julgada e direito adquirido. O ato jurídico perfeito é aquele praticado por uma pessoa durante a vigência de uma lei, consumando-se. Por exemplo, uma pessoa celebra um contrato. Esse contrato é um ato jurídico perfeito e sempre será regido pela lei vigente no tempo de sua celebração.
Uma pessoa adquire um direito quando preenche todas as condições exigidas pela lei para exercê-lo, mas, por algum motivo, ainda não o exerceu, ainda não praticou um ato jurídico. Considera-se que o direito já se incorporou ao patrimônio da pessoa ou a sua personalidade. Por exemplo, uma pessoa aprovada em todas as fases de um concurso público e nomeada para um cargo, adquiriu o direito de tomar posse durante certo lapso de tempo. Mesmo que uma nova lei modifique os requisitos para a ocupação de seu cargo, a pessoa continuará a ter o direito de tomar posse.
A coisa julgada é a decisão judicial de que não caiba recurso, ou, nos termos do art. 467 do CPC, é “a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”. Assim, a sentença que decide um processo que não é objeto de recurso durante o prazo para o mesmo torna-se coisa julgada e não poderá ser modificada por lei posterior. Também a decisão tomada em última instância torna-se coisa julgada.
O direito brasileiro escolheu estabelecer três situações consolidadas na Constituição Federal. A retroatividade não foi proibida, embora a regra legal seja da irretroatividade. Uma lei pode retroagir, desde que respeite os três limites. Todavia, há uma grande exceção constitucional à regra, como veremos.
O art. 5º, XL, estabelece que “lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Em outras palavras, podemos dizer que a lei penal deve retroagir para beneficiar o réu. Por se tratar de uma previsão realizada pelo mesmo Poder Constituinte Originário que estabeleceu a regra de respeito às três situações consolidadas, admite-se que a lei penal benéfica não se sujeita a tais limites, devendo retroagir sempre e modificar até mesmo tais situações.
O art. 2º do Código Penal e seu parágrafo único reafirmam a regra de que a lei penal benéfica deve retroagir, podendo modificar, inclusive, “sentença condenatória transitada em julgado”. Desse modo, se uma pessoa é condenada à prisão por praticar um crime, mas nova lei deixa de considerar sua conduta criminosa, essa pessoa deve ser imediatamente posta em liberdade, modificando-se a decisão que era coisa julgada. Da mesma forma, se a pessoa está presa, condenada a cumprir uma pena de quinze anos, mas a duração máxima da pena de seu crime, por determinação de lei nova, torna-se dez anos, então a sentença que a condenou deve ser reformulada, adequando-se às novas determinações legais.
É importante destacar a existência de uma previsão, no art. 3º do Código Penal, que não se confunde com a retroatividade em benefício do réu. Tal artigo afirma que uma lei penal temporária ou excepcional continuará a reger fatos praticados durante sua vigência mesmo depois de esta terminar.
As leis penais temporárias possuem uma data determinada para perder a vigência; as leis penais excepcionais somente serão vigentes durante um determinado acontecimento (como uma epidemia, por exemplo). Terminado o prazo ou o acontecimento, a lei perde automaticamente sua vigência. Não há uma nova lei revogadora que seja mais benéfica para o réu e possa retroagir. Assim, a conduta criminosa deve, pelos termos do art. 3º, ser punida, mesmo que tenha deixado de ser crime pela caducidade da lei.
É importante deixar consolidado que, embora o direito brasileiro tenha estabelecido que a regra é a irretroatividade das leis, a retroatividade não está proibida, ainda que limitada.
Referências:
DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 16ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011. (art. 6º)
FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão e Dominação. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2003. (4.3.4)