Capitalismo e segurança jurídica
14/08/2023Direito no século XIX: a hegemonia da legalidade
18/08/20231. A Europa em 1880
Conforme o historiador Eric Hobsbawm descreve, a Europa do século XVIII era, paradoxalmente, menor e maior do que a que conhecemos hoje.
a. Menor
A Europa de então possuía menos de um terço da população atual e estava geograficamente mais condensada. Naquela época, a população da França, por exemplo, era estimada em cerca de 28 milhões de habitantes, comparado aos mais de 65 milhões de hoje.
b. Maior
Apesar de sua área geográfica relativamente menor, a Europa do século XVIII era “maior” em termos de como as pessoas a experimentavam. As dificuldades de comunicação e transporte eram imensas, tornando as distâncias muito mais significativas do que são hoje. Notícias circulavam graças a viajantes – sejam eles comerciantes, andarilhos, soldados ou peregrinos. O viajar era, então, uma empreitada arriscada e demorada, o que tornava os locais de nascimento e morte frequentemente os mesmos. Na França, por exemplo, em 1860, 9 de cada 10 pessoas nasciam e morriam no mesmo lugar.
A Europa Também:
a. Era Rural
A Europa do século XVIII era predominantemente rural. O cenário urbano que conhecemos hoje estava longe de ser uma realidade. Na Inglaterra, por exemplo, a população urbana só ultrapassou a rural em 1851. As cidades, em sua maioria, eram muito menores do que são hoje. Londres, a maior delas, tinha uma população de aproximadamente 1 milhão de habitantes. Paris, a segunda maior, tinha cerca de 500 mil. Existiam apenas cerca de 20 cidades em toda a Europa com uma população de mais de 100 mil pessoas.
b. Europa era Absolutista
No século XVIII, a maior parte da Europa estava sob regimes absolutistas, nos quais os monarcas detinham um poder quase ilimitado. A Inglaterra era uma notável exceção, tendo transitado para um sistema constitucional de monarquia após a Revolução Gloriosa de 1688. Esta revolução resultou no estabelecimento de uma monarquia parlamentar, que limitava significativamente os poderes do monarca e estabelecia o Parlamento como a principal instituição do governo. Enquanto isso, em lugares como a França, o rei Luís XIV, que reinou de 1643 a 1715, era um exemplo clássico de um monarca absolutista que acreditava na divindade de seu reinado, como refletido em seu famoso ditado: “L’État, c’est moi” (“O Estado sou eu”).
A Europa do século XVIII, portanto, estava a mundos de distância da que conhecemos hoje. Era uma terra de contrastes acentuados – geograficamente pequena, mas vasta em termos das experiências humanas que continha. Estava no limiar de mudanças revolucionárias que remodelariam profundamente sua geografia humana e política. Estas mudanças, em grande parte impulsionadas por revoluções políticas, teriam implicações profundas não só para o direito, mas para a concepção do que significa ser humano e ser cidadão.
2. Independência dos EUA e Revolução Francesa
Estes dois eventos marcantes do século XVIII não só mudaram o curso da história nos seus respectivos países, mas também enviaram ondas de choque através do continente europeu e do mundo, desafiando as estruturas absolutistas e estabelecendo novos paradigmas de governança e direitos humanos.
Independência dos Estados Unidos
A Independência dos Estados Unidos (1776) foi um evento seminal que inspirou movimentos democráticos em todo o mundo. Vejamos seus principais aspectos:
- Declaração de Independência (1776): Redigida principalmente por Thomas Jefferson, este é o primeiro documento a proclamar os princípios democráticos de soberania popular. A frase “We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal…” (“Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais…”) ressoa como um chamado universal para a igualdade e liberdade humanas.
- Direitos Humanos Universais: Pela primeira vez em um documento político, reconheceu-se a existência de direitos inerentes a todo ser humano, independentemente de raça, sexo, religião, cultura ou posição social. Isso inspirou futuros documentos de direitos humanos, incluindo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na França.
- Constituição dos Estados Unidos (1787): A Constituição dos EUA, e especialmente sua primeira emenda, estabeleceu novas normas para a proteção da liberdade de expressão e de religião.
- Supremacia da Constituição: Em 1803, o caso Marbury v. Madison marcou a primeira vez que a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou uma lei inconstitucional, estabelecendo o precedente para a revisão judicial e solidificando a supremacia da Constituição.
Revolução Francesa
A Revolução Francesa (1789-1799), por outro lado, foi uma explosão de aspirações democráticas na Europa continental. Ela enviou ondas de choque através de uma Europa dominada por monarquias absolutistas. Aqui estão os seus marcos:
- Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789): Este documento, influenciado pela Declaração de Independência dos EUA, estabeleceu os fundamentos dos direitos humanos na França e em grande parte da Europa. O Artigo 1 afirma que os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos, e o Artigo 2 declara que a finalidade de toda associação política é a conservação desses direitos naturais.
- Fim do Absolutismo na França: A Revolução Francesa marcou o fim do absolutismo na França e estabeleceu um precedente para o desafio ao poder monárquico em outras partes da Europa.
- Disseminação de Ideais: A Revolução Francesa não foi apenas um evento francês. Seus ideais e seus debates, muitas vezes violentos, sobre como implementar esses ideais, influenciaram movimentos revolucionários e reformas políticas em todo o continente europeu e nas Américas.
Estes dois eventos, embora distintos em seus detalhes e contextos, contribuíram conjuntamente para uma ruptura significativa com a visão absolutista predominante na Europa continental. Eles também criaram um novo paradigma civilizacional que inspiraria movimentos democráticos e de independência em outras partes do globo, incluindo América Latina e Ásia, solidificando a ideia de que a governança deveria se basear no consentimento dos governados, e não na vontade divina de um monarca.
3. Marcos Jurídicos das Revoluções
As Revoluções Políticas do século XVIII, notadamente a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa, foram mais do que simples reviravoltas políticas; elas estabeleceram fundamentos jurídicos que influenciaram profundamente os sistemas legais ao redor do mundo. Vamos explorar os principais marcos jurídicos dessas revoluções:
Ideia de Soberania Nacional
- A Soberania Nacional é um princípio fundamental que significa que todo poder político reside no povo. Antes das revoluções, a soberania era vista como pertencente ao monarca. Após esses eventos, estabeleceu-se que a autoridade política é exercida em nome do povo.
- Exemplo: A Declaração de Independência dos Estados Unidos afirma o direito do povo de “alterar ou abolir” um governo que viole seus direitos inalienáveis.
Consolidação do Regime Representativo
- As revoluções consolidaram a ideia de que os governantes devem ser representantes do povo, e não suas autoridades absolutas.
- Exemplo: A Constituição dos Estados Unidos de 1787 estabeleceu um sistema de representação política, no qual os cidadãos elegem seus representantes.
Adoção da Separação de Poderes
- Este princípio, advogado por Montesquieu, tornou-se fundamental após as revoluções. Visa a evitar a concentração de poder, distribuindo-o entre diferentes órgãos (Legislativo, Executivo e Judiciário) que são independentes e co-iguais.
- Exemplo: A Constituição dos Estados Unidos incorporou a separação de poderes, limitando rigorosamente as funções de cada ramo do governo.
Valorização da Lei (Positivação dos Direitos Naturais)
- A lei escrita, clara e acessível passa a ser o pilar do sistema jurídico, em contraste com o poder arbitrário dos monarcas. Isso representa a positivação dos direitos naturais, ou seja, sua incorporação em normas jurídicas concretas.
- Exemplo: A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), na França, estabeleceu as liberdades fundamentais como direitos protegidos pela lei.
Supremacia da Constituição
- A Constituição é estabelecida como a lei suprema do país, à qual todas as outras leis devem conformar-se. Isso é crucial para limitar o poder do governo e proteger os direitos dos cidadãos.
- Exemplo: A decisão no caso Marbury v. Madison (1803) nos Estados Unidos estabeleceu o princípio de revisão judicial, que permite ao Judiciário invalidar leis que considere inconstitucionais.
Codificação
- A codificação do direito, inspirada nos ideais da Revolução Francesa, envolve a compilação e sistematização de todas as leis em um código escrito. Isso foi fundamental para a clareza, acessibilidade e aplicação uniforme da lei.
- Exemplo: O Código Napoleônico (1804), também conhecido como Código Civil Francês, foi um dos primeiros e mais influentes exemplos de codificação do direito civil. Ele inspirou a elaboração de códigos civis em vários outros países.
Estes marcos jurídicos não foram apenas teorias abstratas, mas princípios vivos que moldaram a estrutura dos estados modernos. Eles contribuíram para a transição de monarquias absolutistas, onde o poder estava concentrado nas mãos de um único indivíduo ou classe, para sistemas mais democráticos e representativos, onde o poder é exercido de acordo com leis claras e justas, emanadas da vontade do povo e com respeito aos seus direitos fundamentais.