
Formação do Direito Moderno
24/04/2025A separação dos poderes, princípio fundamental da Constituição de 1988, visa evitar a concentração de poder em um único ente estatal, garantindo que diferentes esferas governamentais atuem de forma independente e equilibrada. No Brasil, essa estrutura tem sido desafiada por uma série de conflitos institucionais recentes, refletindo tensões agudas entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, especialmente durante os governos de Jair Bolsonaro (2019–2022) e Luiz Inácio Lula da Silva (2023–presente). Esses embates impactam diretamente a governança e a estabilidade democrática do país.
Um dos pontos críticos dessa dinâmica é a crescente judicialização da política, onde o Judiciário tem se mostrado atuante em questões tradicionalmente políticas, criando uma noção de “juristocracia” no país – quando o Judiciário se torna o árbitro final em decisões políticas controversas. Essa função tem levado ao ativismo judicial, proporcionando ao Judiciário um papel proeminente nas decisões sobre políticas sociais e na interpretação de direitos fundamentais. Barroso (2010) observa que essa tendência levanta preocupações sobre a adequada delimitação das funções do Judiciário, questionando se não haveria uma violação da separação de poderes quando o Judiciário toma partido em questões sociais complexas.
Essa judicialização manifestou-se, por exemplo, durante o atual governo Lula, quando a decisão do Executivo de levar ao STF a discussão sobre a desoneração da folha de pagamento, uma medida aprovada pelo Congresso, foi interpretada como uma afronta ao Legislativo, exacerbando as tensões.
Durante o governo Bolsonaro, observou-se uma intensificação sem precedentes dos confrontos entre o Executivo e o Judiciário. O então presidente frequentemente questionava a legitimidade das urnas eletrônicas e atacava membros do Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente o ministro Alexandre de Moraes. Esses ataques e a disseminação de informações falsas culminaram na abertura de inquéritos pelo STF para investigar ameaças à democracia e às instituições, como o notório “inquérito das fake news”.
Após a derrota eleitoral de Bolsonaro em 2022, esses conflitos transbordaram para a violência com a invasão das sedes dos Três Poderes em Brasília em 8 de janeiro de 2023, um ato amplamente considerado uma tentativa de golpe de Estado. Investigações subsequentes revelaram a existência de planos para prender autoridades, incluindo o ministro Alexandre de Moraes, e anular o resultado eleitoral, culminando na acusação formal de Bolsonaro pela Procuradoria-Geral da República (PGR), em fevereiro de 2025, por envolvimento na tentativa de golpe.
Adicionalmente, a crise de acessibilidade do Judiciário também é um fator que agrava os conflitos entre os poderes. Sadek (2004) argumenta que a crise do sistema de justiça brasileiro está ligada à ineficácia do Judiciário, que se apresenta como anacrônico e inacessível, reforçando uma percepção de que a justiça é um produto elitizado, ao qual apenas parte da sociedade tem acesso. Essa desigualdade no acesso à justiça gera desconfiança em relação ao Judiciário e, por consequência, pode precipitar um ciclo de conflitos tanto com o Executivo quanto com o Legislativo.
O papel da sociedade civil na mediação dessas tensões não pode ser negligenciado. A atuação ativa dos cidadãos, especialmente em situações de crises, exemplifica os desafios enfrentados pelo Estado diante de pressões externas. O estudo de Ferraço et al. (2020) sobre a crise hídrica em São Paulo destaca como os cidadãos se mobilizaram para buscar soluções e respostas ao governo, ressaltando que a governança muitas vezes é desafiada por falhas institucionais. Essa pressão social pode resultar em um aumento da demanda para que o Judiciário intervenha em questões que, de outro modo, seriam tratadas politicamente.
Em relação ao Executivo, outro elemento de conflito surge com o uso de medidas provisórias e a interpretação de seus limites. A utilização de medidas provisórias como uma ferramenta para a tomada de decisão rápida pelo Executivo é ora apoiada, ora criticada pela Assembleia Legislativa. A complexidade deste relacionamento é discutida por Ricci e Tomio (2012), que enfatizam o potencial de abuso dessa ferramenta. Paralelamente, o Congresso tem buscado ativamente limitar os poderes do STF, propondo projetos de lei que visam restringir decisões monocráticas e estabelecer mandatos para os ministros, refletindo um descompasso e disputa de poder entre o Legislativo e o Judiciário.
Além disso, a relação entre os poderes se torna ainda mais intrincada quando se considera as reformas políticas e administrativas propostas. Matos e Dias (2023) destacam que a reforma administrativa pode provocar uma reconfiguração nos poderes do Estado.
A tensão legislativa com potencial para impactar a relação entre os poderes se manifestou de forma contundente quando, em 2025, a Câmara dos Deputados aprovou a Resolução nº 18, suspendendo parcialmente a ação penal contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), acusado de envolvimento na tentativa de golpe de Estado. Essa medida, aprovada por 315 votos a 143, foi criticada por juristas e parlamentares como uma afronta ao STF e obstrução da Justiça, embora o Supremo tenha decidido manter a ação penal em relação aos crimes cometidos antes da diplomação do deputado.
Adicionalmente, tramita na Câmara o Projeto de Lei nº 5793/2023, de autoria do mesmo deputado e outros, que propõe alterações no Código Penal e no Código de Processo Penal relativas a crimes como abolição violenta do Estado Democrático de Direito, sendo interpretado por críticos como uma tentativa de proteger políticos envolvidos em atos antidemocráticos.
A fragilidade institucional e o clima de polarização foram ainda evidenciados pela explosão ocorrida na Praça dos Três Poderes em novembro de 2024. Embora as investigações apontem para um autor isolado, o incidente acendeu alertas sobre a segurança das instituições e a potencial influência de discursos extremistas.
Por fim, os conflitos entre os poderes no Brasil refletem um complexo emaranhado de interesses, tradições e inovações legais que ainda precisam ser navegados com cuidado. O reconhecimento dos direitos indígenas e o papel do Estado na mediação desses direitos, conforme observado por Rocha et al. (2019) e Martins et al. (2022), também destaca como as dinâmicas de poder no Brasil se estendem além dos requisitos legais e estruturais. Esses eventos demonstram que os conflitos entre os Poderes no Brasil não são apenas questões teóricas, mas têm implicações práticas significativas para a democracia e a governança. A constante tensão entre Executivo, Legislativo e Judiciário exige vigilância e compromisso com os princípios democráticos para assegurar a estabilidade e o progresso do país.
Referências:
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Barroso, L. R. (2010). Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista Jurídica da Presidência, 12(96), 5–43. Disponível em: https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/230Revista Jurídica+2Revista Jurídica+2Conpedi+2
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Ferraço, A. A. G., Piauilino, B. B. C., Figueroa, M. R. C. E. C., & Bastian, M. V. S. S. (2020). A atuação da sociedade diante da falha de governança do estado no caso da crise hídrica de São Paulo (2013–2015). Dom Helder Revista de Direito, 3(6), 49–74. Disponível em: https://revista.domhelder.edu.br/index.php/dhrevistadedireito/article/view/1859Google Sites+2Revista Dom Helder+2Revista Dom Helder+2
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Martins, C., Silva, M., Fé, V., Costa, M., Oliveira, B., Jacques, C., & Moleda, J. (2022). A questão indígena e o estado brasileiro atual. Research, Society and Development, 11(11), e480111133379. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/33379RSD Journal
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Matos, F., & Dias, R. (2023). Desafios e oportunidades na gestão ambiental: o papel dos municípios e parcerias na preservação dos recursos hídricos. In Ciências e Tecnologia das Águas: inovações e avanços em pesquisa (Vol. 1, pp. 113–133). Disponível em: https://www.editoracientifica.com.br/books/chapter/desafios-e-oportunidades-na-gestao-ambiental-o-papel-dos-municipios-e-parcerias-na-preservacao-dos-recursos-hidricosLinkedIn+1Editora Científica+1
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Ricci, P., & Tomio, F. (2012). O poder da caneta: a medida provisória no processo legislativo estadual. Opinião Pública, 18(2), 255–277. Disponível em: https://www.scielo.br/j/op/a/z3vWfgJJhp3KHVZBwZrRM5L/SciELO Brazil+1SciELO Brazil+1
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Rocha, D., Porto, M., & Pacheco, T. (2019). A luta dos povos indígenas por saúde em contextos de conflitos ambientais no Brasil (1999–2014). Ciência & Saúde Coletiva, 24(2), 383–392. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/dSgZJn5NWyKx65vqHDQXfBN/SciELO Brazil+1SciELO Brazil+1
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Sadek, M. T. A. (2004). Poder judiciário: perspectivas de reforma. Opinião Pública, 10(1), 1–62. Disponível em: https://www.scielo.br/j/op/a/9RNJ3qdgZvZWzPmzdkk8wwp/SciELO Brazil+1SciELO Brazil+1
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Câmara dos Deputados. (2025, 7 de maio). Câmara aprova suspensão de ação penal contra Delegado Ramagem relacionada a atos do 8 de janeiro. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1156331-camara-aprova-suspensao-de-acao-penal-contra-deputado-delegado-ramagem-relacionada-ao-8-de-janeiro/
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Supremo Tribunal Federal. (2025, 9 de maio). STF mantém ação penal contra deputado Ramagem nas acusações relativas à tentativa de golpe. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1157221-stf-mantem-acao-penal-contra-deputado-ramagem-nas-acusacoes-relativas-a-tentativa-de-golpePortal da Câmara dos Deputados
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CNN Brasil. (2025, 10 de maio). STF acata parte de ato da Câmara e exclui dois crimes contra Ramagem. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/stf-acata-parte-de-ato-da-camara-e-exclui-dois-crimes-contra-ramagem/CNN Brasil