Norma jurídica: análise zetética

O direito contemporâneo possui como elemento essencial a norma jurídica. Trata-se de uma tecnologia que parte de normas jurídicas legais e resulta, principalmente, na produção de normas jurídicas contratuais e judiciais.

O jurista, pessoa que trabalha profissionalmente com o direito, olha para o conjunto de normas jurídicas positivado pelo Estado de um modo dogmático. Ele espera encontrar, nesse conjunto, normas a partir das quais possa elaborar peças processuais que levem à decisão de conflitos com o mínimo de perturbação social.

A ciência dogmática do direito ensina o jurista a encontrar essas normas jurídicas no direito objetivo, organizando o conjunto e permitindo sua manipulação. Na sequência, ensina a interpretar tais normas, dando a elas um significado aproveitável no processo de resolução dos conflitos. Por fim, também ensina o jurista a aplicar as normas jurídicas ao caso concreto, ou seja, a transformar as normas jurídicas gerais e abstratas em normas jurídicas individuais e concretas.

Nossas postagens, até o presente momento, enfrentam, sobretudo, a questão da identificação do direito. Vimos que o direito corresponde a um fenômeno normativo, entre outros fenômenos normativos culturais; vimos que se trata de uma palavra polissêmica e de um fenômeno histórico; por fim, vimos que é marcado por três grandes dicotomias.

As normas jurídicas do direito objetivo permitem aos juristas identificar os direitos subjetivos de cada uma das partes envolvidas em um conflito. A norma traz uma medida de valor que incorpora significados ao fato social. Ou seja, podemos olhar para um fato e interpretá-lo de diversas maneiras. O jurista buscará significados para esse fato que decorram das normas jurídicas.

Assim, um aluno, em uma sala de aula pode levantar o braço. Isso é um fato. Seu significado depende do universo normativo no qual venhamos a inseri-lo. Podemos pensar nas normas costumeiras. Duas interpretações, então, tornam-se possíveis: primeira, o aluno simplesmente está com preguiça, pois conforme o costume, pessoas com preguiça “espreguiçam”, levantando os braços; segunda, o aluno deseja se manifestar oralmente, pois conforme o costume, alunos que desejam fazer uso da palavra em uma aula, levantam o braço para pedir autorização ao professor para falar. Podemos, ainda, pensar que o professor tenha solicitado um voluntário para realizar determinado trabalho; agora, o braço levantado passa a indicar que o aluno se candidata ao afazer.

Pois bem, as normas jurídicas trazem critérios para os juristas interpretarem os fatos sociais, identificando, entre as pessoas envolvidas, aquelas que possuem direitos subjetivos e aquelas que estão sujeitas a obrigações. Aliás, convém destacar que quando um cliente procura um advogado, ele espera que seu advogado lhe diga quais são seus direitos e suas obrigações, ou seja, que dê um significado jurídico a suas relações sociais, partindo do universo do direito objetivo. O cliente não espera que o advogado dê um significado costumeiro, filosófico ou religioso para suas relações sociais.

Constatamos, assim, que a norma jurídica é um elemento essencial nesse processo, pois é a partir dela que o jurista pode afirmar quais são os direitos subjetivos e as obrigações das pessoas envolvidas em uma relação social. Mas, efetivamente, o que faz de uma norma ética uma norma jurídica? Há alguma condição comunicacional que possa dar à norma esse caráter de jurídico?

Analisando as características distintivas das normas éticas, verificamos que todas elas estão presentes nas normas jurídicas: além de serem, como quaisquer normas éticas, imperativas, violáveis e contrafáticas, são também heterônomas, coercíveis, bilaterais e atributivas. Mas podemos abordar a questão sob o ponto de vista da teoria da comunicação.

Analisamos as normas éticas, de um modo geral, sob o ponto de vista comunicativo. Constatamos que dois requisitos são necessários: a mensagem revela um comando, um texto reduzível a um dever ser; o emissor da mensagem deve possuir um grau mínimo de autoridade, reconhecida pelo receptor.

A autoridade do emissor, assim, é condição essencial para diferenciarmos uma mensagem qualquer de uma mensagem normativa. A questão agora é mais específica, como suscitada atrás: difereciar a norma ética religiosa, costumeira ou moral da norma ética jurídica.

Tércio S. Ferraz Júnior afirma que a comunicação sempre transcorre em dois níveis: o relato e o cometimento. O relato corresponde ao nível da mensagem, aquele no qual se manifesta o comando, o dever ser; o cometimento, por seu turno, corresponde ao nível da relação social entre os comunicadores, no qual se manifesta a autoridade do emissor.

Devemos localizar a diferença entre a norma jurídica e outras normas éticas no cometimento. Os comunicadores normativos sempre são marcados pela diferença, pois um possui autoridade e o outro não, e pela complementaridade, um cria o comando e o outro se sujeita a ele (ou o desobedece e assume os riscos da desobediência). A autoridade corresponde à soma da diferença e da complementaridade.

Toda relação de autoridade exige uma confirmação social. Um emissor passa a ter autoridade se a coletividade na qual está o reconhece como tal. Para que uma pessoa crie uma norma, é necessário que seu comando (dever ser) pressuponha a aceitação social de sua autoridade. O receptor do comando pode desconsiderar a mensagem como norma se a autoridade do emissor for desconfirmada por terceiros.

Uma pessoa pode criar uma mensagem proibindo outra de fazer alguma coisa. O destinatário dessa mensagem irá encará-la como norma ou não, caso deseje fazer aquilo de que está proibido, na medida em que verificar o reconhecimento social da autoridade do emissor normativo. Se outras pessoas afirmarem que o emissor possui autoridade para a proibição, então irá aceitar a mensagem como uma norma e pensar se vale à pena desobedecê-la ou não. Todavia, se outras pessoas não reconhecerem o emissor como autoridade, sua mensagem será desconsiderada enquanto norma, não sendo levada a sério.

Em alguns casos, há de se notar, a autoridade já está pré-confirmada pela sociedade. Existe um consenso, uma pressuposição social, de que determinados emissores possuem autoridade para a criação de normas em certos assuntos. Esses emissores estão institucionalizados. É o caso dos pais em relação aos filhos: a sociedade pressupõe que os pais tenham autoridade em relação aos filhos para criarem normas que dirijam suas condutas. Também podemos citar os educadores em relação aos alunos, ou os líderes religiosos em relação a seus seguidores.

Aqui chegamos ao ponto diferenciador, segundo Tércio S. Ferraz Júnior. As normas jurídicas são aquelas normas éticas criadas por emissores cuja autoridade está institucionalizada em um grau máximo. Em outras palavras, a diferença entre uma norma ética qualquer e uma norma ética jurídica está no grau de autoridade pressuposta pela sociedade: se esse grau for o maior reconhecido socialmente, então as normas criadas por esse emissor serão encaradas como jurídicas.

A maior autoridade reconhecida socialmente, hoje, em nosso país, é o Estado. As mensagens criadas pelo Estado que possam ser reduzidas a um dever sersão vistas não apenas como normas éticas quaisquer, mas, especificamente, como normas jurídicas. Enquanto o Estado for reconhecido como a maior autoridade no território brasileiro, suas normas continuarão a ser aceitas como jurídicas; caso surja outra autoridade superior ao Estado em nosso território, então as normas estatais deixarão de ser vistas como jurídicas e as normas dessa nova autoridade ganharão tal contorno.

O Estado, assim, cuja autoridade está institucionalizada em grau máximo, cria normas jurídicas que formam o direito objetivo. A partir dessas normas, as pessoas, em suas relações sociais, passam a ter seus direitos subjetivos garantidos pelo Estado. Isso cria, em toda relação jurídica, uma situação de metacomplementaridade.

Se afirmamos que a relação de autoridade entre o emissor de uma norma ética e seu receptor é complementar porque um cria um comando e o outro deve obedecer a tal comando (complementando-o, pois), devemos então considerar a relação jurídica como duplamente complementar, ou metacomplementar, como dito acima.

A norma jurídica, criada pelo Estado, atribui a uma pessoa autoridade para exigir um comportamento de outra pessoa, havendo uma complementaridade entre eles. Por exemplo, se Fulano é credor de uma quantia em dinheiro de Beltrano, ele possui autoridade, derivada das normas jurídicas, para exigir o pagamento da quantia e Beltrano deve realizar esse pagamento; há, portanto, uma complementaridade. Por detrás dessa relação, há outra complementaridade, derivada do Estado, que garante o direito de Fulano e responsabiliza Beltrano. Assim, caso Beltrano não respeite a autoridade de Fulano, estará sujeito à autoridade do Estado, que irá obrigá-lo a pagar a dívida.

A metacomplementaridade corresponde à atributividade, analisada nas características distintivas das normas éticas: a normas jurídicas conferem uma exigibilidade garantida a determinadas pessoas.

É importante ainda mencionar que não existe relação de autoridade institucionalizada em um grau infinito. Isso significa que a sociedade sempre pressupõe autoridade a um emissor dentro de certos limites, que se manifestam no conteúdo das normas. Em outros termos, nenhum emissor pode criar normas sobre tudo, mas apenas sobre determinados temas.

A sociedade pressupõe a autoridade de um professor para criar normas disciplinares em sala de aula, por exemplo. O professor pode exigir que os alunos, durante sua exposição, permaneçam em silêncio ou não se levantem sem motivos. Todavia, a autoridade do professor não é pressuposta para fora dos limites do estabelecimento de ensino. O professor não pode exigir que os alunos permaneçam em silêncio em suas residências ou fora das dependências do estabelecimento.

Nem mesmo o Estado, cuja autoridade é pressuposta em grau máximo, pode criar normas sobre todos os assuntos. Há limites. Tais limitações decorrem dos valores que a sociedade reputa mais importantes e de suas interpretações ideológicas. A sociedade espera que o Estado crie normas que estabeleçam diretrizes para a conduta humana no sentido de concretizarem tais valores, nunca de os violarem. Se o Estado elabora normas que violam esses valores, então sua autoridade será questionada, deixando de ser pressuposta.

A sociedade, por exemplo, espera que o Estado crie normas para concretizar um valor como o respeito à integridade física dos indivíduos. Se uma lei for aprovada que determine a amputação de um dedo de cada pé das pessoas, essa lei será considerada absurda e a autoridade do Estado para criá-la será questionada.

A Constituição Federal estabelece grande parte dos limites da autoridade estatal, transformando a pressuposição social em normas jurídicas fundamentais. Mas, ainda assim, podem ocorrer situações não previstas pela Constituição, ou situações que revelem conflitos de valores, nas quais a autoridade deixe de ser pressuposta e seja colocada em questão.

Nesta postagem, de um modo zetético, refletimos sobre a norma jurídica, mostrando sua importância para a ciência dogmática do direito, analisando-a sob o ponto de vista da teoria da comunicação e mostrando que há limitações valorativas para seus conteúdos.

Referências:

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão e Dominação. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2003. (4.1)

 


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