Pensamento Jurídico na Alemanha (século XIX)
03/04/2018Positivistas éticos e não-positivistas
06/04/2018Hans Kelsen (1881-1973)
O jurista Hans Kelsen (1881-1973) é dos mais importantes filósofos do direito do século XX. Sua análise delineia, de modo mais bem-acabado, o paradigma jurídico positivista. A descrição que realiza do direito permitirá um desenvolvimento extraordinário de sua ciência, atingindo limites que somente agora começam a ser transpostos.
Em 1934, publica a primeira edição de seu livro Teoria Pura do Direito. Propondo-se a estudar o direito de modo “puro”, pretende afastar-se de juízos de valores e noções abstratas como o jusnaturalismo. Em sua perspectiva, o a essência do direito é sua estrutura normativa: trata-se de um conjunto de normas jurídicas.
Teoria Pura do Direito – direito deve ser descrito sem interferência de valores morais
O papel da ciência jurídica, desse modo, seria descrever o direito. O cientista do direito criaria proposiçõesque descreveriam as normas jurídicas. Essas proposições podem ser consideradas verdadeiras ou falsas; são verdadeiras se correspondem às normas descritas, são falsas se não correspondem a elas.
Analisando a interpretação do direito, o autor classifica-a como autêntica ou doutrinária. A diferença entre elas não seria propriamente de qualidade; nenhuma seria, cientificamente, melhor ou pior. A interpretação doutrinária seria feita pelos estudiosos do direito; a interpretação autêntica, pelos juízes.
Interpretação autêntica ou doutrinária
O ato interpretativo é a soma de dois momentos: o conhecimento e a vontade. Primeiro, o juiz procura conhecer o significado da norma, encontrando vários possíveis. Depois, procura conhecer os comportamentos que devem se adequar à norma, descobrindo aqueles que são permitidos, proibidos ou obrigatórios.
Uma vez identificados os significados que a norma pode ter, sem contrariar o direito, o juiz finaliza a interpretação com um ato de vontade, escolhendo aquele significado que reputa o mais adequado. Essa escolha seria arbitrária, não podendo ser perfeitamente descrita pela ciência do direito.
Interpretação = conhecimento + vontade
Nesse sentido, a questão 11, do caderno branco do XVII Exame de Ordem, traz a visão de Kelsen: “A interpretação cognoscitiva combina-se a um ato de vontade em que o órgão aplicador efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas por meio da mesma interpretação cognoscitiva.”
O estudo de Kelsen sobre o ordenamento jurídico é impressionante. Considerando que as normas estão hierarquicamente distribuídas, existem normas superiores e inferiores. Cada norma pode ordenar, permitir ou habilitar comportamentos.
Ordenamento é conjunto hierárquico de normas
A validade, para Kelsen, é um conceito que analisa normas entre si. Em sua visão, uma norma será válida se não contrariar o significado de outras normas superiores. Assim, as normas superiores conferem validade às inferiores. A Constituição dá validade às leis e a norma fundamental valida a Constituição.
Validade é relação entre normas – superior valida a inferior
Surge uma dúvida: o que é a norma fundamental? Ela, segundo o autor, seria um pressuposto lógico, sem existência real. Seria o princípio fundamental do direito, estabelecendo simplesmente que a Constituição é válida e deve ser obedecida. Nenhuma norma superior a ela existiria. Além disso, a norma fundamental não precisaria ser validada por nenhuma outra, derivando ela simplesmente da necessidade de o sistema jurídico se estruturar.
Norma fundamental é pressuposto lógico
Por fim, convém destacar que Kelsen adota a separação do direito e da moral. O autor é um relativista moral: nenhuma moral, na sociedade, é superior a outra. Existem várias morais sociais, todas em pé de igualdade. Noutras palavras, nenhuma religião ou perspectiva cultural de um grupo seria superior à de outros.
Partindo desse relativismo, nenhuma moralidade poderia colocar-se acima do direito, para lhe conferir validade, nem mesmo noções de justiça social ou de direito natural. O direito seria apenas o conjunto de normas derivadas do Estado, sendo jurídicas todas as leis criadas respeitando a Constituição.
Podemos, assim, considerar Kelsen um positivista: para ele, o direito limita-se às normas criadas pelo Estado.
Direito = conjunto de normas estatais (positivista)
Herbert Hart (1907-1992)
O filósofo de direito Herbert Hart (1907-1992) “inverte” a pirâmide Kelseniana: para ele, a norma fundamental, ou “norma de reconhecimento do ordenamento”, não é um pressuposto lógico, mas um fato social. Ela decorreria do comportamento dos juristas, que respeitariam a Constituição, tendo o hábito social de fundamentar suas peças na Constituição, considerando-a válida e superior.
Norma de reconhecimento do ordenamento é um hábito social
Isso abre espaço para um positivismo brando, chamado de soft positivism. A questão 12, do caderno branco do XXII Exame de Ordem (do Brasil), tratou desse tema. Seu enunciado explicou o seguinte: “A principal tese sustentada pelo paradigma do positivismo jurídico é a validade da norma jurídica, independentemente de um juízo moral que se possa fazer sobre o seu conteúdo. No entanto, um dos mais influentes filósofos do direito juspositivista, Herbert Hart, no seu pós-escrito ao livro O Conceito de Direito, sustenta a possibilidade de um positivismo brando, eventualmente chamado de positivismo inclusivo ou soft positivism.”
O candidato deveria assinalar o conceito de positivismo brando: “A possibilidade de que a norma de reconhecimento de um ordenamento jurídico incorpore, como critério de validade jurídica, a obediência a princípios morais ou valores substantivos”.
Positivismo brando – norma de reconhecimento do ordenamento incorpora princípios e valores
Hart é um antivoluntarista. Os juristas voluntaristas defendiam que a norma era uma criação de uma autoridade, estando essa autoridade sempre acima da norma. Para Hart, a autoridade somente existiria porque antes uma norma lhe teria conferido poder; primeiro existiria a norma; depois, dela decorrendo, surgiria a autoridade.
O pensador, oriundo da tradição inglesa, divide os casos em fáceis e difíceis. Os casos fáceis seriam aqueles em que a aplicação das normas jurídicas não deixaria espaço a dúvidas. Dentro de seus contextos, essas normas poderiam ser consideradas claras, permitindo uma resolução quase automática do conflito.
Os casos difíceis, por seu lado, decorreriam de situações nas quais as normas demonstrariam uma textura aberta, ou seja, revelariam uma margem, mais ou menos ampla, de dúvidas quanto a seu significado. Nesses casos, o aplicador do direito utilizaria seu poder discricionário no caso concreto, dando um sentido real e específico para a norma.
A questão 11 do caderno branco do XII Exame de Ordem (do Brasil) apresentou essa análise. Seu enunciado citou o seguinte trecho do filósofo: “Seja qual for o processo escolhido, precedente ou legislação, para a comunicação de padrões de comportamentos, estes, não obstante a facilidade com que atuam sobre a grande massa de casos correntes, revelar-se-ão como indeterminados em certo ponto em que a sua aplicação esteja em questão”.
Conforme a alternativa a ser assinalada: “Trata-se da textura aberta do direito, expressa por meio de regras gerais de conduta, que deve ganhar um sentido específico dado pela autoridade competente, à luz do caso concreto”.
Casos fáceis e casos difíceis
Uma classificação das normas jurídicas de Hart é bastante utilizada por doutrinadores: primárias e secundárias. As normas primárias determinam comportamentos, estabelecendo-os como permitidos, proibidos ou obrigatórios e, eventualmente, determinando sanções em caso de violações.
As normas secundárias surgiriam para impedir que o direito manifestasse alguns problemas:
1. As normas secundárias de identificação ou reconhecimento permitem a descoberta do significado das normas jurídicas e a determinação de sua validade, eliminando o problema da incerteza;
2. As normas secundárias de câmbio ou mudança regulam a criação de novas normas jurídicas, permitindo que o direito se transforme, eliminando o problema da obsolescência;
3. As normas secundárias de aplicação ou adjudicação regulam a produção de decisões judiciais, como as normas processuais, eliminando o problema da ineficácia.
Normas primárias e normas secundárias (identificação, câmbio e reconhecimento)
Norberto Bobbio (1909-2004)
Norberto Bobbio (1909-2004) escreveu alguns textos de grande importância para o direito. Teoria da Norma Jurídica, por exemplo, é um livro em que estuda a norma, especialmente a norma do direito. Nele, indica critérios de valoração de uma norma: validade, existência, eficácia e justiça. Também apresenta os requisitos habituais que caracterizam uma norma jurídica: imperatividade, estatismo e coatividade.
Em Teoria do Ordenamento Jurídico, seu foco deixa de ser a norma isolada e passa ao conjunto, chamado ordenamento. O direito, de modo similar à perspectiva kelseniana, é identificado ao ordenamento, que se torna o objeto da ciência jurídica. Suas características principais são: unidade, coerência e completude.
Ordenamento jurídico = unidade + coerência + completude
A unidade do ordenamento jurídico decorre de sua estrutura e de suas fontes. Para Bobbio, as fontes do direito são os fatos ou atos dos quais o ordenamento faz depender a produção das normas jurídicas. Em outras palavras, para o autor, o ordenamento, por meio de suas fontes, regula a própria produção de novas normas. Para tanto, existiriam, no direito, as normas de estrutura, que definem requisitos formais como os procedimentos para criação de leis, por exemplo.
Normas de estrutura determinam requisitos para criação de outras normas
A unidade seria trazida, também, pela existência de uma única norma fundamental, no topo do conjunto. Essa norma o unificaria e distribuiria as demais normas de modo escalonado, em níveis hierárquicos sucessivos. Nessa estrutura, ocorreria uma distribuição de competências, havendo sempre um órgão superior que atribui poder normativo a outro inferior, estabelecendo limites materiais e formais a essa transmissão.
Norma fundamental unifica o ordenamento
No ordenamento brasileiro, por exemplo, a norma fundamental determinaria a competência do Poder Constituinte para criar a Constituição. O Constituinte, por seu lado, atribuiria competência ao Poder Legislativo para criar as leis. Para as leis serem válidas, o Legislativo precisaria respeitar os limites materiais impostos pelo Constituinte e precisaria seguir os procedimentos formais por ele determinados.
Hierarquia do ordenamento = distribuição de competências
Voltando à norma fundamental, ela estabeleceria que as normas constitucionais são obrigatórias e seria o fundamento de validade de todas as normas do sistema jurídico. Em específico, diferindo de Kelsen, Bobbio não a considera um mero pressuposto lógico, mas a deriva do poder originário. A norma fundamental, pois, seria criada pelo conjunto das forças políticas hegemônicas em determinado contexto histórico, impondo à sociedade a obediência a seu ordenamento.
Norma fundamental criada pelas forças políticas hegemônicas
Quanto à coerência do ordenamento jurídico, Bobbio afirma que ele é um conjunto sistemático, ou seja, que não tolera antinomias. A antinomia é o conflito entre duas normas, uma incompatibilidade entre ambas. Por exemplo, uma norma obriga e outra proíbe a mesma coisa.
Antinomia = conflito entre normas incompatíveis
Para ocorrer uma antinomia, haveria a necessidade de preenchimento de alguns requisitos:
1. As normas devem pertencer ao mesmo ordenamento jurídico (o brasileiro, por exemplo);
2. As normas devem ter o mesmo âmbito de validade temporal (devem ser contemporâneas), espacial (devem ser destinadas a produzir efeitos no mesmo território), pessoal (devem ter o mesmo grau de generalidade) e material (devem tratar do mesmo assunto).
Requisitos para a antinomia = normas do mesmo ordenamento + mesmo âmbito de validade (temporal, espacial, pessoal e material)
A questão 11, do caderno branco do XXII Exame de Ordem (do Brasil), abordou a questão dos requisitos para ocorrer uma antinomia: “As duas normas em conflito devem pertencer ao mesmo ordenamento; as duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade, seja temporal, espacial, pessoal ou material”.
Haveria antinomias de dois tipos: as solúveis (aparentes) e as insolúveis (reais). No primeiro caso, o conflito seria resolvido revogando-se uma das normas conflitantes, utilizando-se um dos critérios: hierárquico, especialidade e cronológico. Uma norma conflitante superior revoga a inferior (hierarquia); uma norma conflitante mais recente revoga a mais antiga (cronologia); uma norma especial revoga a geral em seu âmbito (especialidade).
Antinomias aparentes são solúveis (hierarquia, cronologia e especialidade)
Quando os conflitos envolvem não apenas normas, mas também os critérios, haveria uma antinomia real. Também poderia ocorrer a insuficiência de critérios, nenhuma deles permitindo resolver o conflito. Ainda assim, o juiz deverá escolher uma norma para resolver um conflito.
Antinomia real = conflito de critérios ou falta de critérios
Esse tema foi abordado na questão 11, do caderno branco do XVIII Exame de Ordem (do Brasil): “Para o jusfilósofo Norberto Bobbio, uma antinomia real se caracteriza quando estamos diante de normas colidentes e o intérprete é abandonado a si mesmo pela falta de um critério ou pela impossibilidade de solução do conflito entre os critérios existentes”.
Por fim, o ordenamento jurídico é completo. Isso significa, conforme Bobbio, que todo conflito social deve estar previsto em uma norma jurídica, não podendo haver lacunas. Haveria, portanto, o dogma da completude, ou seja, a obrigatoriedade de o juiz julgar todos os conflitos, sempre com base em uma norma pertencente ao ordenamento jurídico. Se uma lacuna for constatada, deve ser prontamente eliminada.
Completude do ordenamento – juiz deve julgar todos os conflitos com norma do ordenamento
Não obstante esse dogma da completude, pode ocorrer uma lacuna ideológica. Nesse caso, não faltaria uma lei para julgar um caso, mas essa lei seria considerada rigorosa demais ou injusta.
Lacuna ideológica = existe lei, mas é considerada inadequada pelo juiz
A questão 11, do caderno branco do XVI Exame de Ordem (do Brasil), solicitou do candidato a definição, para Bobbio, de lacuna ideológica: “a falta de uma norma justa, que enseje uma solução satisfatória ao caso concreto”.
Caso o juiz precise julgar um caso para o qual não encontre uma lei, constatando a existência da lacuna, deve realizar seu preenchimento pois, como dito, o ordenamento não a tolera. Esse preenchimento pode ocorrer de duas formas:
1. Autointegração: a lacuna é resolvida por recurso a elementos do próprio ordenamento (por analogia ou pelos princípios gerais do direito);
2. Heterointegração: a lacuna é resolvida por recurso a outros ordenamentos (por exemplo, o direito natural) ou a elementos externos ao ordenamento (costumes, equidade).
Lacuna deve ser preenchida por autointegração (analogia ou princípios) ou heterointegração (direito natural, costumes, equidade)
A questão 12, do caderno branco do XX Exame de Ordem (do Brasil), solicitou do candidato o conceito de analogia, enquanto método de autointegração do direito: “Existindo relevante semelhança entre dois casos, as consequências jurídicas atribuídas a um caso já regulamentado deverão ser atribuídas também a um caso não-regulamentado”.