Sociedade, valores e controle social
09/02/2011Normas físicas ou normas naturais
21/02/2011Pensamento Mítico
A Filosofia é um modo de pensar específico, que supera, em determinado momento histórico, um outro modo de pensar, até então hegemônico.
Esse modo de pensar superado pela Filosofia chama-se Mito. Em termos genéricos, consiste numa narrativa sobre a origem de alguma coisa. Assim, as histórias que explicavam o origem do mundo, dos seres vivos, do bem e do mal, das guerras etc., eram mitos.
Porém, havia algo de comum a todas essas histórias: sempre explicavam as coisas ou acontecimentos terrenos a partir de deuses ou seres sobrenaturais (ou seja, “fora da natureza”, “fora do mundo”). Os mitos eram histórias narradas por pessoas específicas, escolhidas pelos deuses para transmiti-las aos humanos, e esclarecê-los a respeito da existência de tudo.
Normalmente, tais explicações davam-se de três modos básicos:
1. Encontrando “pai e mãe” de tudo: as histórias míticas podem ser genealogias, ou seja, literalmente, a busca de um discurso que explique a origem das coisas ou dos acontecimentos a partir do deuses.
Um exemplo de explicação mítica: uma pessoa tornou-se apaixonada por outra porque foi ferida pela flecha de um deus, Eros (ou Cupido). Este deus, por sua vez, é filho de Penúria (deusa faminta, miserável e sedenta) e Poros (deus da astúcia, da busca de estratagemas para resolver os problemas).
Desse modo, pessoa apaixonada, ferida por Eros, torna-se faminta e sedenta de amor. Busca diversos estratagemas para ser amado e satisfeito, oscilando entre a tristeza e o desamparo, por um lado, e a alegria e a vivacidade, por outro.
Veja: o comportamento da pessoa apaixonada está satisfatoriamente explicado, graças à “filiação” desse comportamento aos deuses que o causam. Uma pessoa apaixonada fica do modo que a caracteriza porque foi ferida por um deus e carregará consigo as características desse deus, filho de outros deuses.
2. Outra forma de narrar dos mitos é justificando as coisas e os acontecimentos não pela filiação, mas por conflitos e alianças envolvendo os deuses, que interferem na vida terrena. Uma briga entre os deuses pode resultar no apoio ou na imposição de dificuldades aos atos de determinados mortais, conforme esses mortais gozem da simpatia ou da antipatia daqueles envolvidos na briga.
Precisamos destacar que, para as civilizações marcadas pelo pensamento mítico, haveria duas temporalidades distintas: o tempo fraco, típico dos acontecimentos banais, que não duram, são efêmeros; e o tempo forte, marcado por acontecimentos extraordinários, capazes de durar, de permanecer ao longo da história.
Para tais sociedades, os atos meramente humanos são incapazes de extrapolar os limites da temporalidade fraca e de atingir a temporalidade forte, perdurando. Tudo aquilo o que é feito apenas pelos humanos irá durar pouco e se extinguir, como a vida humana se extingue.
Por outro lado, em determinadas situações, os atos humanos podem contar com o apoio dos deuses. Esse apoio é capaz de elevar o ato da temporalidade fraca para a temporalidade forte, dando a ele ou a seus frutos a possibilidade de permanecer na história. Por isso, quando os seres humanos pretendem construir coisas grandiosas, pedem, sempre, o apoio dos deuses.
Um exemplo disso é a Guerra de Tróia. Especificamente no tempo fraco, seria um acontecimento banal, incapaz de perdurar: um conflito envolvendo gregos e troianos, que logo seria resolvido. Contudo, a partir do momento que sua existência extrapolou os limites do razoável (chegando a 10 anos!), a mitologia passou a explicá-lo como um ato tocado pelos deuses.
Especificamente, a Guerra de Troia passa a ser justificada não como um mero conflito decorrente de interesses comerciais opostos, mas como um conflito surge após uma controvérsia entre três deusas do Olimpo. Essas deusas se dividem, apoiando gregos ou troianos e levando consigo o apoio de outros deuses.
Agora, o fato de uma Guerra entre humanos ter durado tanto tempo e se transformado em um acontecimento inesquecível pode ser explicado por ter envolvido, em última instância, um conflito suprahumano, entre deuses. A temporalidade da Guerra de Troia tornou-se forte.
3. Além dos modos descritos acima, os mitos podem explicar os acontecimentos terrenos justificando-os como recompensas ou castigos impostos pelos deuses aos mortais.
Coisas excepcionalmente boas ou ruins que acontecem a determinada pessoa são justificadas como uma recompensa ou um castigo decorrente da satisfação ou da insatisfação dos deuses para com seus comportamentos.
Quando uma pessoa padece de males extremos, investiga sua vida pretérita para tentar encontrar algum comportamento que tenha desagradado algum deus. Quando encontra ou pensa encontrar esse comportamento, tentará corrigi-lo oferecendo algo para compensar sua falha. Muitas vezes fará o sacrifício de um animal e até, em casos mais graves, de um ente querido.
No mesmo sentido, mas de modo preventivo, aquele que embarca em uma jornada longa ou perigosa, buscará agradar alguns deuses, por meio das oferendas e dos sacrifícios, a fim de obter seus apoios e tornar-se exitoso. A falta dessas medidas preventivas soará como perigosa e eventual prenúncio de malogro da iniciativa.
O pensamento mítico, portanto, recorrendo a um desses três procedimentos básicos, torna-se capaz de explicar, de um modo satisfatório para determinadas civilizações, os principais fatos e acontecimentos da vida das pessoas. De um modo mais geral, a própria existência do mundo (Cosmogonia) pode ser facilmente compreendida pelas pessoas.
(bibliografia sugerida: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Unidade I, cap. 2, “Mito e Filosofia”)
Nascimento da Filosofia – condições históricas
A sociedade grega, no final do séc. VII e início do séc. VI a.C., passa por algumas transformações que criam as condições necessárias para o surgimento da Filosofia.
Essas condições modificam as relações do homem grego com seu mundo e com o conhecimento, conferindo-lhe instrumentos teóricos que possibilitam a superação do pensamento mítico. São elas:
1. Viagens marítimas levam os gregos aos extremos do mundo Antigo, chegando a regiões nas quais deveriam habitar deuses e seres extraordinários. Todavia, os navegantes constatam que essas regiões eram habitadas apenas por seres naturais.
Tal circunstância promove um “desencantamento” do mundo, trazendo dúvidas para as explicações mitológicas de um modo geral. A partir de então, os gregos passam a exigir outras explicações para a origem do mundo e para a existência das coisas.
2. Invenções como o Alfabeto, o Calendário e a Moeda representam o mundo a partir de abstrações, permitindo aos gregos desenvolver noções racionais a respeito de temas antes concretos ou presos às explicações sobrenaturais.
O Alfabeto traz consigo uma relação diferenciada com a linguagem, que pode ser reduzida abstratamente a um conjunto de sons que, somados, possibilitam a comunicação. Com isso, as palavras não são mais encaradas como intrinsecamente vinculadas às coisas, mas apenas como sua arbitrária expressão.
O Calendário, por sua vez, revela uma noção diferenciada do tempo, como algo que passa e pode ser medido, desvinculado do devir cíclico da natureza, que traz consigo o constante recomeçar. O tempo torna-se um conceito puro, cujo evoluir pode ser registrado e medido.
A Moeda, por fim, revela o desenvolvimento de outra noção abstrata, o valor econômico. Com sua disseminação, os gregos podem recorrer a um conceito abstrato capaz de medir coisas concretas diferentes, comparando-as e trocando-as.
Todas essas invenções, em última instância, “funcionam” de um mesmo modo: incorporam noções abstratas a coisas concretas ou levam as coisas concretas às noções abstratas. Ora, tal mecanismo “ensina” os gregos a fazer abstrações, afastando-se das características aparentes dos objetos, chegando a ideias racionais e sem recorrer aos deuses. Isso é fundamental, pois esse processo corresponde ao “pensar” do filósofo.
3. Surgimento da vida urbana e do dinamismo comercial das cidades leva a um questionamento às explicações imobilistas dos mitos, típicas de sociedades também pouco dinâmicas, marcadas pela vida rural. No campo, o tempo passa conforme os ciclos naturais, as estações do ano se repetem e a vida transcorre sempre do mesmo modo; nas cidades, o tempo natural perde seu sentido, o ritmo do ano passa a ser ditado pelo comércio e a vida é “agitada” pela vida social intensa. A Razão mostra-se mais adequada a esse dinamismo.
4. Invenção da Política traz consequências marcantes para a sociedade grega e soma-se aos fatores que negam força aos mitos. A Política, em suma, consiste na organização da vida comum, que se passava nas cidades (Pólis). Essa organização materializava-se nas leis (normas). Os gregos, a partir dessa atividade de organizar suas cidades por meio de leis, passam a conceber o mundo como uma estrutura que possui regras. Justamente uma das funções do filósofo é descobrir as leis que estruturam o mundo.
Além disso, a política traz consigo um modo de funcionar que pressupõe o uso público da palavra. O discurso mítico é um discurso que não pode ser questionado pelo homem comum, derivado de pessoas escolhidas pelos deuses e marcado pelo segredo. Ao contrário, o discurso político deve ser questionado, pode ser elaborado por qualquer pessoa e busca abolir os segredos.
Assim, os gregos habituam-se, aos poucos, a um discurso que pode, inclusive, ser ensinado aos jovens, levando a um ideal de educação voltado ao uso da palavra.
Somados os fatores acima, constata-se que havia, no mundo grego do período, um ambiente extremamente favorável para o surgimento da filosofia. Trata-se de um modo de pensar que parte de um mundo desencantado, requer a capacidade de se fazer abstrações, discute a mobilidade e a imobilidade do ser e necessita do discurso livre e racional para se materializar.
(bibliografia sugerida: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Unidade I, cap. 1 e cap. 2)
A Filosofia: surgimento
Na passagem do século VII para o VI a.C., a sociedade grega passa por algumas transformações históricas que levam à crise do pensamento mítico.
Alguns gregos, oriundos de colônias localizadas no Mar Egeu e suas adjacências, começam, então, a buscar novas formas de pensamento que expliquem a origem do mundo sem o recurso aos Deuses. Essa busca pressupõe a constatação de que o discurso pode levar à verdade, não mais considerada um privilégio secreto e misterioso, revelada apenas aos sacerdotes, mas sim algo público, suscetível de ser descoberta, ensinada e transmitida a todos.
No século V a.C., Pitágoras de Samos inventa a palavra que designará, até hoje, a postura adotada por essas pessoas: FILOSOFIA. Literalmente, significa a amizade (FILO) pela sabedoria (SOFIA), indicando que a sabedoria completa e plena não é propriedade de qualquer ser humano, mas que todos podem e devem amá-la e desejá-la.
O filósofo deseja, assim, incessantemente, encontrar a sabedoria. Sabe que nunca a possuirá integralmente, mas sempre precisará buscá-la. Aquele que se considera seu possuidor e deixa de procurá-la, dela começa a se afastar. Perde o desejo e deixa de ser um filósofo.
(bibliografia sugerida: CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. Unidade I, cap. 1 e cap. 2)
A Filosofia: caracteres gerais e diferenciações
O novo modo de pensar que surge entre os gregos, chamado Filosofia, “funciona” a partir de alguns mecanismos peculiares. O filósofo “pensa”, naquele momento, seguindo um mesmo roteiro básico.
A busca pela verdade deve problematizar toda a qualquer explicação preestabelecida, questionando-as. As explicações míticas, aceitas por força da tradição, precisam ser submetidas a uma reavaliação, pois não satisfazem mais os novos critérios que norteiam o pensamento. As aparências nem sempre revelam a realidade fundamental de alguma coisa, e aquelas explicações que se limitam a encontrar essa aparências também precisam ser descartadas.
O novo procedimento filosófico, de busca incessante, elege a RAZÃO como critério para se chegar à verdade, negando importância a outros critérios que se pretendam superiores a ela. Assim, por exemplo, o já citado pensamento mítico é desconsiderado, por submeter a razão às narrativas envolvendo seres sobrenaturais.
O grande desafio do filósofo é encontrar explicações que se bastem na própria razão, sendo satisfatória sem a necessidade de recorrer a fundamentos sobrenaturais ou irracionais. Para vencê-lo, deve constantemente demonstrar e fundamentar (racionalmente) suas afirmações, apresentando argumentos e submentendo-as às dúvidas e às discussões.
O bom filósofo consegue formular teorias cujos argumentos racionais podem ser submetidos a severas discussões, que questionam sua estrutura e seu fundamento, sem perderem sua força de convencimento.
Além disso, o discurso filosófico opera com dois mecanismos típicos: a generalização e a diferenciação. O filósofo deve ser capaz de vencer a ilusão causada pelas aparências e encontrar, racionalmente, o que há de comum entre objetos ou fenômenos (que parecem diferentes entre si), catalogando-os em um único grupo geral. Ou ainda deve ser capaz de fazer o oposto, mostrando que a semelhança entre alguns objetos ou fenômenos é apenas aparente e demonstrando as características próprias de cada um deles.
Convém constatar que a Filosofia diferencia-se do Mito sob alguns aspectos.
Inicialmente, a explicação mítica volta à origem das coisas e dos fenômenos, encontrando, nessa origem, uma narrativa que recorre aos deuses. Já a explicação filosófica, por sua vez, não se limita a buscar a origem dos fenômenos, embora também se preocupe com isso. A Filosofia busca a explicação sobre tudo, em todos os tempos, durante todo o tempo.
Ainda podemos diferenciá-los alegando que o Mito explica a origem, conforme dito, recorrendo aos seres divinos. Todas as coisas derivam de atos que envolvem deuses. Já a Filosofia limita-se a explicar as coisas e os fenômenos a partir de elementos naturais e de seus movimentos, sem o recurso ao sobrenatural (que estaria fora da natureza e, portanto, seria inexplicável racionalmente).
Um exemplo de explicação filosófica é a tentativa de reduzir todos os objetos aos quatro elementos naturais (água-úmido, ar-frio, fogo-calor, terra-seco) e seus movimentos de combinações e repulsas. Os seres são reduzidos a tais elementos e suas características explicadas pelo predomínio de um deles ou por suas combinações.
Por fim, convém acrescentar que a explicação mítica não é racional, ou seja, não se preocupa com a eliminação de contradições ou com o esclarecimento do incompreendido. Trata-se de um discurso movido pela autoridade de quem o revela, cercado de mistérios e sem a necessidade de um encadeamento lógico.
A explicação filosófica não aceita tais “irracionalidades”. Seu discurso precisa ser coerente, não podendo justificar-se na autoridade de quem o profere, mas precisando submeter-se, reiteradamente, à prova das discussões públicas. As contradições precisam ser eliminadas, assim como o incompreendido torna-se inaceitável e precisa ser esclarecido.
Podemos constatar, dadas as colocações anteriores, que a Filosofia é um modo de pensar que possui características próprias e diferenciadoras, delimitando-se como um mecanismo de pensamento novo e inovador no momento em que surge.
(bibliografia sugerida: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Unidade I, cap. 1 e cap. 2)
A Razão
O principal instrumento de que se vale o filósofo para estruturar seu pensamento e para medir o grau de veracidade de sua tese é a RAZÃO.
Duas palavras da cultura antiga, ratio, de origem latina, e lógos, de origem grega, dão o significado original para nossa palavra razão: ao mesmo tempo, significam pensar e falar, de um modo organizado e proporcional, construindo um discurso claro e compreensível para outros.
Podemos considerar que razão designava, assim, ao mesmo tempo, o encontro, no plano do pensamento, com a ideia fundamental sobre alguma coisa e a transformação dessa ideia em um discurso, em uma fala que pudesse ser comunicada de modo compreensível a outras pessoas.
Também podemos considerar que a palavra designa o próprio mecanismo de descobrir o princípio de organização de alguma coisa, ideal ou concreta, de tal sorte que essa coisa, depois de vista como organizada “racionalmente”, pode ser mais facilmente compreendida pelas pessoas.
Assim, a Razão consiste no princípio último de organização da realidade, que, se descoberto pelo filósofo, revelará a ele a verdadeira estrutura do ser, compreensível e comunicável.
Nesse movimento de busca da verdade, a Razão precisa vencer alguns obstáculos, que desviam o filósofo de seu encontro. Um grande obstáculo é a aparência ou a ilusão que, trazida pelos costumes, pelos preconceitos, pelo imediatismo das pessoas, revela apenas uma falsa organização do ser e impede o acesso a sua estrutura mais profunda e verdadeira, também chamada de sua essência.
Outros obstáculos são as paixões, forças cegas, caóticas, desordenadas e contraditórias, que afastam o filósofo da postura prudente e controlada que deve nortear o pensamento.
Também a religião se opõe à Razão enquanto critério da verdade. A postura religiosa valoriza a autoridade de quem produz o discurso, derivando-a de uma revelação divina. Isso é inaceitável sob o ponto de vista racional, pois a verdade deve ser buscada pelo filósofo, tornando-se fruto de seu trabalho intelectual, sendo muito mais transpiração do que inspiração.
Da religião deriva também a crença de que a verdade pode derivar de um êxtase místico, de uma relação direta entre o ser divino e seu profeta, sem passar pelo intelecto da pessoa “iluminada”. Tal estado é quase o oposto da postura racional, pois traz uma sensação de encontro com a verdade não comunicável, que somente pode ocorrer naquele que entrou em contato com os deuses.
O filósofo luta contra os obstáculos acima, movimentando seu pensamento em busca da verdade, que consiste, conforme afirmado, no encontro com o princípio de organização ou de constituição das coisas e dos fenômenos. Ou seja, no encontro da Razão, do lógos de cada coisa.
(bibliografia sugerida: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Unidade II, cap. 1)
A busca da completude do direito grego
Com o fim das fundamentações míticas para explicar os fenômenos, os gregos deparam-se com o problema de encontrar fundamentos racionais (lógicos) que os expliquem. Trata-se de um verdadeiro desafio: explicar ou justificar todas as coisas sem recorrer ao sobrenatural ou ao divino.
No mesmo momento histórico, as cidades gregas começam a ser estruturadas a partir de normas laicas e positivas. Até então, concebia-se que toda a ordem do universo e da Pólis derivava de situações míticas. Com a crise na crença nos mitos, as normas tornam-se frutos das discussões políticas e não de atos de revelação religiosa.
As normas, assim, passam a ser consideradas laicas, pois não são criadas pelos deuses, mas pelos humanos. Elas são positivas, ou seja, postas ou criadas por um ato de vontade coletiva, por uma decisão política dos cidadãos.
Trata-se de um rompimento significativo, sobretudo para a história do Direito. A partir de então, falar de direito é falar de algo criado pelos seres humanos para os seres humanos. As normas correspondem a um momento político, materializando a vontade coletiva da cidade grega.
Surge, porém, o desafio descrito inicialmente: se as normas são criadas apenas por seres humanos e não pelos deuses, como podem ser justificadas? Em outras palavras, em sendo os seres humanos meros mortais, são falíveis, podem errar. Como saber se as normas laicas e positivas são boas ou justas? Haveria um critério para medir a qualidade de uma norma?
Podemos considerar que a filosofia do direito comece com a busca a tais respostas, com a necessidade de superar o desafio de fundamentar o próprio direito sem recorrer aos deuses.
Esse é o impasse que vive Creonte, na tragédia Antígona: não consegue encontrar um fundamento para suas decisões mais forte do que os mitos, aos quais ele se recusa a submeter-se. Antígona, que pode simbolizar o ideal aristocrático decadente, refuta a possibilidade de uma norma laica e positiva ser mais forte do que uma norma derivada dos deuses. Mas o momento da peça não mais permite o predomínio mítico, levando ao fim trágico dos personagens.
A superação ao desafio de fundamentar as normas envolve o encontro de respostas que situem o direito em um contexto mais amplo, colocando-o em harmonia com as regras do universo (kosmos) e da natureza (physis), demonstrando a completude da vida. Haveria a necessidade de se demonstrar, racionalmente, que a Pólis encontra-se em um espaço dentro da natureza e do universo e que as leis que regem a cidade estão em sintonia com as leis que regem esse ambiente.
Além disso, também devemos considerar que, dentro da Pólis, o direito é apenas uma faceta da existência completa do homem grego. Há uma complementaridade trazida pela facetas política e ética da existência. Em linhas gerais, politicamente os gregos criam a norma (o direito) e estabelecem os espaços éticos de cada cidadão.
A busca da completude do direito grego é a busca da fundamentação racional de suas normas. Demonstrando-se que a norma está em harmonia com o universo e a natureza, por um lado, e com a política e a ética, por outro, resolve-se a questão de se saber se ela é boa ou não, justa ou injusta.
Uma grande dificuldade sempre enfrentada pelos filósofos envolve a questão de situar a Pólis em relação à natureza. Será que as normas criadas na cidade devem simplesmente reproduzir, em um tom humano, o teor das normas pré-existentes na natureza? Ou uma norma humana pode radicalmente transformar as normas naturais, como o homem transforma a natureza para produzir a cultura?
As diversas respostas a essa última questão revelam a constante preocupação dos filósofos de fundamentar o direito e a liberdade humana sem desprezar sua primordial condição natural.
Em suma, com a crise do mito, os filósofos precisam justificar o direito. Essa justificativa espera situá-lo, sempre que possível, de um modo harmônico na totalidade da existência física e moral.