Profissões jurídicas: Advocacia (II)
18/11/2014Profissões jurídicas: Advocacia (IV)
20/11/2014Na postagem anterior, apresentamos os espaços de atuação do advogado (departamentos jurídicos e escritórios), tratando brevemente de questões como o aumento de tamanho de escritórios ligados ao contencioso de massa, o elevado número de não-sócios nos maiores escritórios e a inadequação da estrutura atual da advocacia, monopolizada pela OAB, para o atendimento lucrativo do cliente individual pessoa física. Nesta postagem, refletiremos sobre o modo tradicional de atuar do advogado e as pressões exercidas sobre ele.
Primeiro, devemos salientar que o advogado é um intermediário. De um lado, está o cliente que deseja praticar um ato, evitar ou resolver um conflito; do outro lado, está o responsável pelo conflito ou o Estado, que garantirá a validade do ato ou resolverá o conflito.
Como um intermediário, sua presença sempre exige justificativa, não podendo ser pressuposta. O cliente pode praticar o ato sozinho, pode resolver ou evitar um conflito negociando, pode pedir diretamente o amparo do Estado para a resolução do conflito. Mas, por alguma razão, não consegue agir e procura o advogado. Qual seria essa razão?
O advogado apresenta-se como profundo conhecedor da legislação estatal e dos procedimentos, principalmente judiciais, para evitar ou resolver conflitos. Seu grande trunfo é o grau de segurança das medidas que pode adotar, sendo as mais seguras dentro da sociedade. Se há a necessidade de o cliente praticar o ato, o advogado vende a certeza de que esse ato será válido e não poderá ser desfeito futuramente; se há a necessidade de o cliente resolver um conflito, o advogado vende a certeza de que a decisão que obterá, independentemente de seu conteúdo, será definitiva, não podendo ser alterada por outra autoridade ou instância.
Como o advogado sempre trabalhou em um ambiente de monopólio profissional, pôde dar-se ao luxo de vender apenas a segurança de sua atividade, sem preocupar-se com outras qualidades. Com o controle profissional sobre o conhecimento exigido para sua atividade, o advogado podia dar-se ao luxo de falar uma linguagem não compreendida pelo cliente, preocupando-se apenas em traduzir aquilo o que reputasse conveniente. Com o controle profissional sobre os padrões de atuação, sobre os procedimentos a serem adotados, o advogado podia escolher autonomamente as medidas adotáveis e dar poucas satisfações ao cliente.
Por perceber que não era capaz de chegar ao conhecimento e a compreender os procedimentos adotados pelo advogado, o cliente contentava-se com as poucas informações prestadas por ele, não tendo condições de efetivamente avaliar e controlar seus atos. Assim, a definição do preço do serviço estava nas mãos do advogado, bem como uma estimativa quanto ao tempo necessário para sua realização.
Nessas condições, o profissional podia pouco se preocupar com aspectos ligados à gestão e à eficiência de sua atuação, negligenciando técnicas básicas de administração e, por vezes, aspectos como a comunicação com o cliente ou a produtividade de seu escritório. Sua forma tradicional de gerir o escritório consistia em distribuir clientes a seus advogados, que se responsabilizavam, sozinhos ou com suas equipes, pela prática de todos os atos ligados àquele cliente.
A equação usual era: um cliente + atos e procedimentos = um advogado responsável e sua equipe. A gestão desses atos e procedimentos era feita de modo artesanal, com uso superficial de tecnologia da informação, no geral limitada a uma planilha e um editor de textos. No máximo, o advogado mantinha um banco de modelos elaborados a partir de casos anteriores, mas fazia questão de dizer que “começava cada petição de uma página em branco”.
Alguns estudiosos (SUSSKIND, TROTTER) convergem ao apontar três forças que pressionam por mudanças nesse modo de trabalhar:
- Necessidade de mais eficiência: parece haver uma convergência pela redução de custos da advocacia e aumento de produtividade no mercado internacional. Essas pressões ocorreriam, num primeiro nível, dentro dos departamentos jurídicos das empresas e extrapolariam seus limites ao atingir os escritórios contratados por essas empresas. Segundo SUSSKIND, tratar-se-ia da pressão do “mais por menos”, ou seja, o advogado é cada vez mais exigido e menos remunerado. Seu resultado imediato seria a necessidade de os escritórios adotarem práticas de gestão mais avançadas, modificando o modelo artesanal de atuação;
- Aumento de competição: em vários níveis a zona de conforto gerada pelo monopólio profissional é ameaçada pela competição. Internamente, há mais advogados nacionais no mercado, aumentando a oferta e, naturalmente, exigindo uma diferenciação mais refinada entre eles para conquistar os clientes. Há, ainda, dentro do mercado jurídico, a competição crescente de escritórios de advocacia internacionais que penetram nos diversos mercados nacionais e desestabilizam suas relações internas. Por fim, as fronteiras entre o jurídico monopolizado pela advocacia e o não monopolizado são cada vez mais questionadas pela possibilidade de leigos e profissionais de outras áreas desenvolverem atividades de prevenção e resolução de conflitos;
- Mudanças tecnológicas: inovações trazidas pela internet e pelas TIs (tecnologias de informação) permitem que os conhecimentos necessários para o desenvolvimento das atividades tradicionais da advocacia estejam cada vez mais disponíveis gratuitamente a todos, tornando obsoletos os procedimentos praticados pelos advogados e, no limite, pelos próprios judiciários. Por um lado, torna-se fácil saber o que faz um advogado, qual a duração média de seu trabalho e qual seu valor real, dando ao cliente um potencial de controle antes pertencente ao profissional.
Essas forças, deixemos claro, ameaçam a atuação artesanal e improdutiva do advogado, exigindo uma mudança de postura ao gerir o caso de seu cliente; ameaçam, ainda, a postura cômoda de o advogado vender serviços preocupado apenas com a segurança da medida, devendo, assim, incorporar outras qualidades a seus procedimentos; por fim, ameaçam o controle sobre o conhecimento que, no limite, deixa de ser especializado para tornar-se comum, potencialmente inviabilizando a continuidade do projeto profissional nos termos atuais.
Nos Estados Unidos, como citado na postagem anterior, as pressões acima descritas levam os departamentos jurídicos a uma atuação mais preventiva e a uma gestão diferenciada dos trabalhos rotineiros e repetitivos. No primeiro caso, a palavra de ordem é gerenciamento de riscos, que pode ser feita por meio de auditorias, checagens e padronização de documentos. No segundo caso, alguns departamentos jurídicos crescem para resolver internamente litígios menos complexos e rotineiros. Além disso, contratam bons advogados para trabalhar pela metade do preço de um grande escritório. Por fim, há departamentos jurídicos transferindo alguns trabalhos para call centers ou para departamentos em regiões nas quais a mão-de-obra é mais barata.
SUSSKIND descreve cinco modelos de prestação de serviços jurídicos:
- Artesanal: é aquele serviço tradicional, “feito a mão”, no qual cada cliente é tratado individualmente, havendo encontros “um a um” com o advogado. Os documentos e as petições são feitos sob medida para as necessidades específicas do cliente e a prestação do serviço é presencial e personalizado;
- Padronizado: em determinadas situações, o serviço artesanal começa a se padronizar, a virar rotina. Isso pode ocorrer pela padronização de procedimentos, com o reaproveitamento de um método que funcionou com um cliente para o outro, muitas vezes via checklists. Mas também ocorre a padronização de conteúdo, quando partes de um documento ou de uma petição são reutilizadas, transformando-se em modelos para a elaboração de novos. A padronização ainda seria baseada no papel, com prestação pessoal e contato direto entre advogado e cliente;
- Sistematizado: a padronização é levada a um novo patamar quando são desenvolvidos sistemas que passam a conduzir o trabalho do profissional, permitindo, por exemplo, a produção de documentos ou petições mediante o preenchimento digital de formulários. Nesse caso, há a possibilidade de a prestação ocorrer pela internet, havendo um controle pelo cliente e a visão do fluxo da atividade;
- “Empacotado”: uma série de sistemas são fundidos e oferecidos ao cliente. Esses sistemas compõem um serviço jurídico pré-moldado que é instalado em sua própria empresa, permitindo que seus funcionários preencham formulários e usem os modelos para praticarem os atos necessários. O escritório disponibiliza serviços online que podem complementar o “pacote” vendido;
- Comoditizado: nessa fase, as atividades do serviço jurídico tradicional, em determinado ramo, tornam-se tão banais, que uma quantidade enorme de fontes as disponibilizam online no mercado, em patamares de qualidade razoáveis. A concorrência entre essas fontes barateia o preço do serviço que, no limite, torna-se gratuito, inviabilizando sua exploração comercial.
A commodityjurídica, ainda conforme SUSSKIND, seria um “pacote” de serviços percebido como indiferenciado no mercado (como um saco de arroz ou de feijão), consistindo de uma solução online feita para uso direto do consumidor (Do It Yourself), que apenas responde as perguntas e preenche formulários para obter a prestação desejada.
Vimos que a sociologia das profissões aborda o tema da comoditização, encarando-a de dois pontos de vista: para a profissão, parece ser negativa, pois pode levar a sua extinção; para a população, porém, pode significar uma democratização de acesso aos serviços antes monopolizados, homogeneizando os patamares de qualidade. Na advocacia, a percepção não é diferente. Sua comoditização, inegavelmente, facilitaria e ampliaria o acesso à justiça. Qualquer cidadão poderia, gratuitamente, praticar todos os atos judiciais, sem a necessidade de contar com o auxílio de um especialista.
A advocacia tradicional, assim, pode desaparecer com ela. Lembremos que o advogado é apenas um intermediário. Se o direito passa a ser visto como um conjunto de informações genéricas, disponíveis gratuitamente na internet, ninguém verá razão para contratá-lo pois todos saberão como evitar e resolver conflitos. Bastará seguir os comandos de um programa de computador online e o processo se constituirá e se resolverá automaticamente.
Essa visão pessimista, contudo, não pode ofuscar duas coisas: primeiro, a advocacia pode não desaparecer, mas se transformar em outras atividades; segundo, enquanto a comoditização é apenas uma hipótese, há a necessidade de não negligenciar as outras formas de prestação do serviço jurídico (artesanal, padronizada, sistematizada e “empacotada”).
Assim, o melhor que o advogado atual tem a fazer é não olhar para o cliente e seus procedimentos como algo uno, monolítico, indivisível. O serviço prestado por um advogado é complexo, devendo ser decomposto em muitas fases e procedimentos diferentes. Caberia ao profissional, assim, segmentar sua atividade em tarefas, verificando quais as melhores formas de atuação em cada uma delas. Essa mudança de foco pode fazer toda a diferença, conferindo à sua atuação mais eficiência e, até mesmo, maior qualidade. Ela é chamada de decomposição.
Uma litigância, por exemplo, conforme proposta do SUSSKIND, poderia ser dividida em várias tarefas, como: a gestão de documentos, a pesquisa legal/jurisprudencial, a pesquisa doutrinária, a comunicação com o tribunal e com o cliente… Cada uma dessas tarefas poderia ser executada de um modo mais pertinente: artesanal, padronizado, sistematizado, “empacotado” e, até, comoditizado. Conforme o caso, as pesquisas poderiam ser feitas automática e gratuitamente pela internet, ou simplesmente suprimidas com o uso de um modelo.
Além disso, nem todas as tarefas precisam ser realizadas pelo advogado ou por seu escritório. Há a possibilidade do uso de fontes múltiplas (multisourcing) para a realização de cada uma dessas tarefas. Algumas delas são melhor executadas por profissionais de grande qualificação, mas outras podem ser feitas por pessoas sem grande qualificação ou automatizadas. Muitas podem ser prestadas por pessoas externas ao escritório de modo mais eficiente. Surge, assim, a necessidade de uma “engenharia” jurídica para melhor gestão dos serviços advocatícios.
Claro que as forças de pressão já impactam na advocacia mundial. Nos Estados Unidos, por exemplo, o uso da decomposição e de fontes múltiplas ocorre em alguns segmentos e transforma a profissão. BROOKS, nesse sentido, realizou uma pesquisa interessante sobre os advogados temporários norte-americanos.
Existem, desde a década de 1980, firmas especializadas em “terceirizar” advogados. O advogado “terceirizado” é encaminhado para realizar, durante algumas semanas, um projeto especial para o cliente que o contrata. Terminado o projeto, esse advogado aguarda um novo chamado da firma para nova atividade temporária.
As firmas que fazem a “terceirização” cadastram advogados interessados, prometendo: uma vida mais livre, pois o advogado temporário poderia escolher quando trabalhar ou não; a flexibilidade de aceitar participar de projetos em horários alternativos ou em jornadas peculiares; a possibilidade de ter contato com grandes escritórios de advocacia e ser efetivado em algum deles.
Todavia, a realidade apurada foi outra. O tipo de trabalho temporário estudado foi a revisão de documentos. Em determinados casos, o volume de documentos é tão elevado, que nem o grande escritório de advocacia consegue analisá-los em sua totalidade. Para tanto, como por razões de sigilo profissional somente advogados podem ver tais documentos, uma firma de temporários é contratada.
Os advogados que revisam documentos realizam uma tarefa sem qualquer fundo intelectual, apenas separando documentos por grau de relevância para o caso. Percebem, logo, que a atividade é mecânica e repetitiva, sem qualquer resquício da autonomia profissional. Não podem decidir o que, como e quando agir. Apenas cumprem as ordens e agem de modo robotizado, sob fiscalização, sem sequer entenderem de modo efetivo o caso no qual estão “atuando”.
Todas as promessas da firma de terceirização são desmentidas: não há liberdade de o advogado temporário recusar um projeto, pois a firma o “pune” não o chamando para outros; não há flexibilidade, pois a rotina da revisão de documentos é previamente determinada e todos querem ganhar o máximo possível, sendo remunerados por hora; nunca um grande escritório norte-americano contrata um advogado temporário para seu quadro permanente.
BROOKS verificou condições desumanas de trabalho: jornadas superiores a 14h diárias, ambientes insalubres, ausência de repouso semanal… Sua conclusão é a de que estaria surgindo uma subclasse de advogados, bifurcando-se a profissão em uma base composta por eles e uma elite bem remunerada e desenvolvendo atividades próprias da ideologia profissional.
Mas talvez essa constatação seja parcial. Se voltarmos à perspectiva de SUSSKIND, uma das pressões que o direito sofre por mudanças deriva das inovações tecnológicas. Elas podem não simplesmente criar uma subclasse que seria eliminada com automação, mas podem desestruturar completamente a advocacia atual, atingindo inclusive sua elite.
Nesse ponto, precisamos dividir as inovações em duas espécies: inovações que reforçam as práticas empresarias e inovações disruptivas, que as modificam completamente.
O autor elenca treze tecnologias que reputa disruptivas para o direito tradicional:
- Elaboração automática de documentos via preenchimento online de formulários;
- Conectividade em tempo real, impedindo o advogado de se “desconectar” de seu cliente;
- Mercado jurídico eletrônico, no qual profissionais são avaliados e “leiloados”;
- Sistemas de aprendizagem e treinamento online, rompendo a necessidade da capacitação presencial dos novatos;
- Aconselhamento jurídico online, permitindo que os clientes consigam conselhos jurídicos a baixo custo;
- Legal open-sourcing, sites com conteúdo jurídico comoditizado, disponíveis gratuitamente para uso dos cidadãos;
- Comunidades jurídicas fechadas, permitindo a troca de informações entre profissionais para resolução de problemas comuns;
- Sistemas de gerenciamento de procedimentos como workflow e gerenciamento de projetos;
- “Embedamento” jurídico, ou seja, a inserção de informações jurídicas nas coisas, programando-as a funcionar dentro dos limites da legislação;
- Resolução de disputas online (ODR), mecanismos que permitem arbitragem, mediação ou negociação via internet;
- Busca jurídica inteligente, sistemas que permitem a localização catalogada de documentos em larga escala;
- Big data, sistemas que dão sentidos inesperados a grandes volumes de informações, permitindo um melhor gerenciamento de riscos;
- Resolução de problemas baseada em Inteligência Artificial (AI), sistema que analisa a linguagem natural das pessoas que peticionam, classificando e solucionando litígios.
Todas essas tecnologias podem, como mencionado, transformar o atual mercado jurídico em outra coisa completamente diferente. Se isso ocorrer, a precarização da base da advocacia atual será apenas o início de um processo que inviabilizará a atuação da própria elite. Numa advocacia reformatada, não fará sentido qualquer cliente preferir um profissional antigo, pois seu preço será incompatível com a qualidade do serviço oferecido em face daquilo o que pode ser encontrado gratuitamente ou a baixíssimo custo.
No Brasil, podemos encontrar um exemplo de disrupção no contencioso de massa. Talvez os escritórios que o praticam caminhem para uma uniformização de procedimentos que se torne universal e possa atingir todos os ramos do direito, em todas as fases, abolindo a distinção “massa” e “estratégico”. Seu modo de operar pode tornar-se tão mais eficiente que o advogado artesanal elitizado, que cause sua extinção. Não faria sentido pagar por ele se o escritório “de massa” faz a mesma coisa por muito menos.
Mas o contencioso de massa contém sua própria disrupção: no seu horizonte está não apenas a superação da dicotomia citada acima, e sim de si próprio, comoditizando-se. Litigar, elaborar um contrato e promover uma fusão de empresas serão coisas tão acessíveis a todos, via internet, que nenhum profissional será necessário. Isso significará a morte definitiva da advocacia tradicional.
É importante destacar que uma nova advocacia pode surgir. A sociedade é dinâmica e complexa. Novos problemas surgirão e poderão exigir outros conhecimentos especializados para serem resolvidos.
Referências:
- BROOKS, Robert A. Cheaper by the hour – temporary lawyers and the deprofessionalization of the law. Philadelphia: Temple University Press, 2011.
- FERREIRA, Adriano de Assis. Advocacia em Ebulição.
- SUSSKIND, Richard. Tomorrow´s Lawyers – an introduction to your future. Oxford: Oxford University Press, 2013.
- TROTTER. Declining Prospects – How extraordinary competition and compensation are changing America´s major law firms. North Charleston (SC): CreateSpace Independent Publishing Platform, edição kindle, 2013.