Análise sociológica das profissões
16/11/2014Profissões jurídicas: Advocacia (II)
18/11/2014Nesta e nas próximas postagens, apresentaremos a advocacia no Brasil de um ponto de vista oriundo da sociologia das profissões. De modo preliminar, vejamos sua descrição feita pelo Catálogo Brasileiro de Ocupações (CBO):
“Postulam, em nome do cliente, em juízo, propondo ou contestando ações, solicitando providências junto ao magistrado ou ministério público, avaliando provas documentais e orais, realizando audiências trabalhistas, penais comuns e cíveis, instruindo a parte e atuando no tribunal de júri, e extrajudicialmente, mediando questões, contribuindo na elaboração de projetos de lei, analisando legislação para atualização e implementação, assistindo empresas, pessoas e entidades, assessorando negociações internacionais e nacionais; zelam pelos interesses do cliente na manutenção e integridade dos seus bens, facilitando negócios, preservando interesses individuais e coletivos, dentro dos princípios éticos e de forma a fortalecer o estado democrático de direito.”
Nessa definição, aparecem duas categorias de atividades: 1. Atividades judiciais (processuais), destacadas em vermelho; 2. Atividades extrajudiciais, envolvendo mediação, assuntos legislativos, aconselhamento e negociação, destacadas em azul. Essas atividades são realizadas de um modo “profissional”, que corresponde à imagem idealizada dos advogados: altruísmo (preocupação primordial com a pessoa e os bens do cliente), defesa de direitos e da democracia, respeito a padrões éticos de conduta.
Essa imagem do advogado consolida-se no final da década de 1980, durante a feitura da nova Constituição Brasileira. Sua raiz, contudo, encontra-se na década de 1970, quando, após um período de relativa estagnação, houve um aumento, incentivado pela política militar, no número de faculdades de direito, seguido pela ampliação da oferta de advogados no mercado. Olhando apenas para o Estado de São Paulo, por exemplo, em 1964 havia 12 faculdades de direito; em 1982, esse número saltou para 32. No Brasil, o número de advogados salta de 37.000 em 1970 para 85.000 em 1980.
Essa expansão ocorre com uma mudança qualitativa no perfil de formação do bacharel em direito: o curso de direito transforma-se de humanista em técnico-profissionalizante. Como afirmam CAMPILONGO e FARIA, estruturou-se na década de 1970 um ensino de direito que transmite informações genéricas, desarticuladas e pouco sistematizadas aos alunos, que não permitem o entendimento do ambiente econômico, social e político, nem efetivamente preparam para o exercício da profissão.
Com a crise iniciada no final da década e alastrada para os anos 1980, a absorção dos bacharéis em direito pelo mercado torna-se difícil. Muitos desses profissionais são contratados, formal ou informalmente, como assalariados, seja em departamentos jurídicos, seja em escritórios de advocacia.
Durante o processo de redemocratização brasileira, houve a transformação de lutas sociais e políticas em lutas jurídicas, cooptadas pela Assembleia Nacional Constituinte e, então, conduzidas por juristas. Como consequência, a nova Constituição passa a incorporar novos direitos, ampliando os limites do jurídico (SANTOS, 2008, p. 84).
A ampliação do jurídico foi acompanhada pela ampliação da estrutura burocrática da sociedade brasileira, levando a um aumento do espaço de atuação profissional para os graduados em direito, que passam a agir na defesa dos novos direitos e a ocupar os cargos oriundos desse processo. Isso decorreria, segundo SANTOS, de um projeto profissional dos juristas, buscando a ampliação do mercado de trabalho.
Com a aprovação do novo texto constitucional e a bem sucedida ampliação do mercado jurídico, os profissionais do direito abandonam as posições políticas centrais do Estado brasileiro e passam a ocupar cargos técnicos ou a dedicarem-se à advocacia, de um modo despolitizado. Um exemplo pode ser visto no cargo de Presidente: 50% de seus ocupantes foram advogados. De 1988 para cá, contudo, nenhum advogado tornou-se presidente.
Nas palavras de SANTOS (2008, p. 90): “Os profissionais do direito monopolizaram um mercado de atuação profissional, mediando ideologicamente a construção de um estado democrático de direito depois de anos de autoritarismo. Dedicando-se mais à atividade profissional num nicho próprio, e com menos risco do que quando disputavam uma vaga na arena política, acabaram reforçando a profissionalização no campo jurídico, acirrando as disputas internas entre as diferentes carreiras e se tornando tecnicamente mais preparados para a atuação profissional”.
Podemos, assim, sintetizar o processo:
- No início da década de 1970 há uma expansão no número de faculdades de direito que leva a um aumento no número de advogados;
- O perfil do graduando torna-se mais técnico e menos humanista, para fornecer juristas ao processo de expansão econômica conduzido pelos militares;
- A crise econômica impede a absorção do total do contingente de formados pelo mercado no final dos anos 1970 e início dos 1980s;
- Ocorre um assalariamento da advocacia;
- Durante a constituinte, os advogados assumem controle da transição e implementam seu projeto profissional, consolidando e ampliando o monopólio pela judicialização da sociedade;
- Com o aumento do mercado, os advogados abandonam a esfera política tradicional e dedicam-se ao exercício profissional estrito.
Analisando-se os textos das constituições brasileiras, podemos notar essa ampliação de poderes da advocacia:
- A palavra “advogado” não é utilizada nas constituições de 1824 e de 1891;
- Na Constituição de 1934, aparece três vezes: uma na indicação do “quinto” constitucional (composição dos Tribunais) e duas na elaboração de projeto para o CPC;
- Na Constituição de 1937, aparece apenas uma vez (na indicação do “quinto”);
- Na Constituição de 1946, aparece quatro vezes: três na indicação do “quinto”, uma na participação da OAB nos concursos para a magistratura;
- Nas Constituições de 1967 e 1969, aparece oito vezes: sete na indicação do “quinto”, uma na participação da OAB nos concursos para a magistratura.
Na Constituição de 1988, por sua vez, a palavra “advogado” aparece vinte e oito vezes:
- Uma vez indicando a necessidade de assistência de um advogado ao preso;
- Seis, ao tratar da Advocacia-Geral da União/ Advocacia Pública;
- Três, na participação da OAB em concursos jurídicos;
- Treze, na indicação do “quinto”;
- Uma, na possibilidade de o julgamento não ser público por determinação da lei;
- Três, na atribuição de competência à OAB para propor determinadas medidas ou praticar determinados atos;
- Uma, ao determinar a indispensabilidade do advogado à administração da justiça.
Além disso, a palavra “advocacia”, que não é usada nas demais constituições, surge treze vezes na atual. De todos os usos constitucionais, o mais expressivo é o do artigo 133: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Ele constitucionaliza a profissão da advocacia, sua inviolabilidade e torna definitiva uma constatação que deveria sempre ser submetida ao debate público, a indispensabilidade do advogado à administração da justiça.
Com o constante aumento no número de graduados em direito, o monopólio sobre a advocacia, exercido pela OAB, passa a ser ameaçado. Em 1994, como resposta, é aprovada a Lei n. 8.906/94, que estabelece novo Estatuto da OAB e da Advocacia. Enquanto o estatuto anterior primeiro descrevia a OAB e depois estabelecia as condições para o exercício da advocacia, o de 1994 já delimita o monopólio sobre a profissão em seu início.
O artigo 1º trata, assim, das atividades privativas da advocacia: postulação a órgão do Poder Judiciário; consultoria, assessoria e direção jurídicas; assinatura de atos e contratos constitutivos de pessoas jurídicas. Além disso, exclui o habeas corpus dessas atividades e também delimita a exclusividade da advocacia, proibindo sua divulgação conjunta com outras atividades.
O artigo 3º estabelece que o exercício da advocacia e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na OAB, sendo nulos, conforme o artigo 4º, os atos privativos praticados por “não inscritos na OAB”. Tais artigos garantem o controle de acesso à profissão e o fechamento do mercado, impedindo outros profissionais de prestarem serviços ligados à distribuição estatal da justiça.
A grande novidade, além da nova estrutura do Estatuto, porém, veio com a exigência de aprovação no Exame de Ordem, considerada constitucional pelo STF em 2011, para a inscrição na OAB. O excesso indesejável de graduados em direito passa a ser filtrado por essa barreira, modulada conforme os interesses do órgão de classe de aprovar mais ou menos candidatos.
Antes de apresentarmos alguns dados quantitativos, convém destacar que o artigo 2º repete a noção constitucional de que o advogado é indispensável à administração da Justiça e o artigo 6º equipara o advogado ao juiz e ao promotor de justiça, afirmando não haver hierarquia ou subordinação entre eles. São medidas para reafirmar a importância do advogado e sua força na sociedade para “cumprir seu papel”.
Há grande explosão de cursos de direito em São Paulo entre 1998 e 2002: de 62 faculdades para 180. Embora o crescimento tenha continuado, de 2002 a 2011 o aumento foi de 73 faculdades, ante 58 no período destacado.
Curiosamente, o número de alunos inscritos nos Exames da OAB, no Estado de São Paulo, fica próximo a 20.000 entre 2001 e 2005 (11 exames analisados) e entre 2013 e 2014 (4 exames analisados). Talvez tenhamos chegado a uma estagnação no número de estudantes matriculados, apesar do aumento no número de instituições de ensino.
Em termos nacionais, é difícil encontrar dados confiáveis. Notícia publicada em 2010 na página da OAB Federal afirmava que o Brasil possuiria mais cursos do que o resto do mundo, sendo 1249 nacionais ante 1100 no exterior. BONELLI, porém, afirma que havia 380 faculdades em 2001 e 1210 em 2011. Nesse ano, a autora contabiliza 201 faculdades nos Estados Unidos e 987 na China. Não parece, assim, haver mais faculdades em nosso país do que no restante do mundo.
Em 2007 a OAB obteve uma vitória normativa em busca de ampliação de seu monopólio profissional e fechamento de mercado, no sentido de tentar controlar a criação de novas faculdades de direito: conforme a portaria 147 do MEC, caso uma entidade que deseje abrir um curso de direito tenha parecer desfavorável do Conselho Federal da OAB, deve demonstrar sua “relevância social, com base na demanda social e sua relação com a ampliação do acesso à educação superior, observados parâmetros de qualidade”. Apesar disso, o ritmo de crescimento continua intenso até início da década de 2010.
Em 22/03/2013, notícia do portal UOL afirma existirem 1200 cursos de direito no Brasil e 800mil matrículas. Em 05/12/2013, o ministro da Educação Aloizio Mercadante afirmou que o MEC realizará uma inspeção nos 740 cursos de graduação da área, conforme o portal G1. Visitamos o site e-MEC em agosto de 2014 e pesquisamos a palavra “direito” na página de cursos. Houve 1195 resultados, levando a crer que esse seja o número de cursos em funcionamento. No XII Exame da OAB, porém, participaram alunos de 1298 cursos de direito. Infelizmente, não podemos precisar o número.
A tabela abaixo especifica o número de inscritos nos últimos Exames e os índices de aprovação:
exame OAB |
inscritos |
aprovados |
%
|
2010.1 |
95.764 |
13.435 |
14,02
|
2010.2 |
106.041 |
16.974 |
16,00
|
2010.3 |
106.891 |
12.534 |
11,72
|
IV |
121.380 |
18.234 |
15,02
|
V |
108.355 |
26.024 |
24,01
|
VI |
101.246 |
25.912 |
25,59
|
VII |
111.909 |
16.419 |
14,67
|
VIII |
117.852 |
20.785 |
17,63
|
IX |
118.537 |
12.513 |
10,55
|
X |
124.887 |
32.088 |
25,69
|
XI |
101.156 |
12.786 |
12,63
|
XII |
122.354 |
16.665 |
13,62
|
O volume de novos advogados nos últimos anos tem elevado os números brutos e relativos de advogados na sociedade brasileira. De 85.000 em 1980, saltamos para 825.000 em agosto de 2014.
Apenas de fevereiro de 2013 a agosto de 2014, esse número saltou de 751.363 para 825.139. Para termos uma ideia se esse crescimento é efetivo, precisamos compará-lo com a população total do país. Caso a população tenha aumentado em um ritmo maior, não haverá aumento efetivo de advogados. Essa relação entre advogados e população revela a densidade desses profissionais.
Olhando a quantidade de advogados por 100mil habitantes, notamos que tem crescido significativamente. Até 1970, essa densidade foi estável: 38 em 1950, 42 em 1960 e 41 em 1970. Com o aumento de faculdades e crescimento do mercado a partir de 1970, a densidade cresce bastante: 101 em 1980, 282 em 2007 e 311 em 2013.
Se compararmos os 311 advogados por 100.000 habitantes no Brasil em 2013 com outros países, veremos que temos uma densidade maior de advogados que a apresentada por diversos países europeus em 2011: Bélgica (167/100mil), França (84/100mil), Alemanha (191/100mil), Itália (270/100mil) e Espanha (278/100mil). Já os Estados Unidos, porém, apresentavam uma densidade, em 2009, superior à nossa: 380/100mil habitantes.
Notamos, assim, que o movimento iniciado na década de 1970, de expansão do número de advogados, sob controle da OAB pelo menos desde 1988, persiste. Na próxima postagem, analisaremos a atuação do advogado no Brasil contemporâneo e veremos as transformações pelas quais passa a profissão.
Referências:
- ALMEIDA, Frederico Normanha Ribeiro de. A ADVOCACIA E O ACESSO À JUSTIÇA NO ESTADO DE SÃO PAULO (1980-2005). São Paulo: USP, 2005.
- BONELLLI, Maria da Gloria. Profissionalismo, Gênero e Diferença nas carreiras jurídicas. São Carlos: EDUFSCar, 2013.
- CAMPILONGO, Celso Fernandes e FARIA, José Eduardo. A Sociologia Jurídica no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Anonio Fabris, 1991.
- FERREIRA, Adriano de Assis. Advocacia em Ebulição.
- SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos Santos. DIREITO E PROFISSÕES JURÍDICAS NO BRASIL APÓS 1988: expansão, competição, identidades e desigualdades. Rio de Janeiro: tese de doutorado, UFRJ, 2008.