Direito no século XIX: a hegemonia da legalidade
18/08/2023O direito no século XIX: a questão social
20/08/20231. Revolução Industrial
Transformação Econômica: De Rural e Artesanal para Urbana e Mecânica
A Revolução Industrial, iniciada na segunda metade do século XVIII na Inglaterra, foi um dos fenômenos mais transformadores da história. Este período é marcado pela transição de uma economia predominantemente rural e artesanal para uma economia urbana e industrializada. A produção manual e localizada de bens foi substituída pela produção em massa em grandes fábricas, que eram abastecidas por complexos sistemas de máquinas.
Por exemplo, no setor têxtil, a invenção da Spinning Jenny (1764), a Water Frame (1769) e o Spinning Mule (1779) permitiram uma produção de fios e tecidos muito mais rápida e em maior volume. Isso eliminou a necessidade da produção manual, que era a base da economia pré-industrial.
Simbologia da Estrada de Ferro
A estrada de ferro simboliza o espírito da Revolução Industrial de diversas maneiras. Ela não apenas exemplifica os avanços tecnológicos da época, mas também representa a integração de diversas regiões e o fomento do comércio e da mobilidade populacional. O primeiro serviço ferroviário público foi inaugurado na Inglaterra, entre as cidades de Stockton e Darlington, em 1825, e, pouco depois, a linha entre Liverpool e Manchester, em 1830.
As ferrovias eram um símbolo de progresso e modernização, permitindo o transporte rápido e eficiente de mercadorias e pessoas. Isso contribuiu para a queda nos preços dos produtos, o aumento do mercado consumidor e o crescimento das cidades. As ferrovias também são um símbolo do poder e do alcance das novas classes industriais e comerciais, que foram fundamentais para financiar e promover esses projetos de infraestrutura.
Impacto Social e Geográfico
A Revolução Industrial alterou profundamente as estruturas sociais e geográficas. A população começou a se deslocar do campo para as cidades em busca de empregos nas novas fábricas. Por exemplo, a população de Manchester, Inglaterra, aumentou de cerca de 25.000 em 1773 para 303.000 em 1851, refletindo essa migração massiva para centros urbanos.
Essa urbanização não foi sem seus desafios. As cidades industriais cresciam de maneira rápida e desorganizada, muitas vezes sem infraestrutura adequada para suportar o influxo de pessoas. Isso resultou em condições de vida precárias para muitos trabalhadores, com habitações superlotadas e insalubres, longas jornadas de trabalho e salários baixos.
Mudança no Emprego e nas Habilidades
Antes da Revolução Industrial, a produção era predominantemente artesanal, com mestres artesãos possuindo um conjunto altamente especializado de habilidades. A produção industrializada mudou isso dramaticamente. As fábricas usavam trabalho menos qualificado, que operava máquinas. Isso desvalorizou o conhecimento e a experiência dos artesãos, que muitas vezes se viam forçados a trabalhar em fábricas sob condições muito piores do que estavam acostumados.
Resumo
A Revolução Industrial marcou a transição de uma economia rural e artesanal para uma economia urbana e mecanizada. As estradas de ferro se tornaram um símbolo poderoso deste período, representando tanto o progresso tecnológico quanto a integração econômica e social que essas mudanças trouxeram. No entanto, esse período também foi marcado por desafios significativos, como a rápida urbanização e a deterioração das condições de trabalho para muitos.
2. Urbanização e Vida Burguesa
A Vida “Burguesa”
No século XIX, com a ascensão da indústria, uma nova classe social emergente, a burguesia, começou a desempenhar um papel proeminente na vida econômica e cultural. A burguesia era uma classe diversificada, variando desde profissionais liberais, empresários, banqueiros até comerciantes. Eles eram, geralmente, ricos, mas não necessariamente aristocratas; sua riqueza vinha do comércio, da indústria ou de profissões liberais, e não de terras herdadas.
Por exemplo, enquanto um artesão ou um pequeno comerciante podia ser considerado parte da classe média baixa, um banqueiro ou um proprietário de fábrica bem-sucedido estava no topo da hierarquia burguesa.
“Self Help” (1859) – Samuel Smiles
Samuel Smiles, um escritor e reformador escocês, publicou “Self-Help” em 1859. Este livro foi um manual de como uma pessoa poderia progredir na vida através do trabalho árduo e da autodisciplina. Ele se tornou um best-seller e um dos livros mais populares do século XIX. Smiles argumentava que qualquer pessoa poderia melhorar sua posição na vida através da educação e do esforço pessoal. Este livro reflete os ideais burgueses de responsabilidade individual e a crença no poder do trabalho árduo para gerar sucesso.
Construção da Família e do Lar
A família burguesa do século XIX tinha uma estrutura muito definida, onde o marido era, muitas vezes, visto como o “senhor absoluto” da casa – o provedor financeiro e a autoridade final. A esposa, por outro lado, era vista como pura, moral e dedicada à gestão do lar e à educação dos filhos – uma figura central na chamada “esfera doméstica”.
Por exemplo, a casa burguesa era muitas vezes um símbolo de status. Os membros dessa classe buscavam casas que oferecessem não apenas conforto, mas também uma sensação de segurança e privacidade. Os interiores eram decorados de forma elaborada, refletindo o gosto e a educação dos proprietários.
Surgimento dos “Rituais Domésticos”
Na vida burguesa, surgiram rituais e costumes que destacavam a estrutura e a estabilidade desejadas por essa classe. As refeições diárias em família, muitas vezes formalmente organizadas, eram uma ocasião para a família se reunir. As férias familiares, como viagens para o litoral ou para o campo, tornaram-se uma prática comum entre as famílias burguesas.
Por exemplo, o jantar não era apenas uma necessidade física, mas uma ocasião social, um momento em que a família se reunia, discutia os eventos do dia e reforçava seus laços. Esses rituais domésticos eram importantes não apenas para a estrutura da família, mas também como uma forma de demonstrar status e respeitabilidade.
Busca pela Segurança
Com a urbanização e o crescimento das cidades, a segurança tornou-se uma preocupação significativa para a burguesia. Eles buscavam viver em bairros seguros e bem cuidados e eram defensores fervorosos da manutenção da ordem pública. Isso também se refletia na arquitetura das casas burguesas, que frequentemente incluía características como muros altos e portões de ferro para manter a propriedade segura.
Resumo
No século XIX, a burguesia emergiu como uma classe social influente e diversificada, desempenhando um papel central na vida econômica e cultural da Europa. Com valores centrados na família, no trabalho árduo e na educação, a burguesia buscava estabilidade e conforto em um mundo rapidamente urbanizado e industrializado. Essa classe desempenhou um papel fundamental na formação das normas e valores que continuam a influenciar a vida familiar e social até os dias de hoje.
3. Ideologia Liberal
A Percepção Burguesa dos Problemas Sociais
No século XIX, a burguesia, que se tornou a classe dominante em muitas partes da Europa, estava plenamente ciente dos problemas sociais gerados pela industrialização, como a pobreza extrema, as condições de trabalho precárias e as crescentes disparidades de renda. No entanto, a maior parte da burguesia mantinha uma fé inabalável no progresso e na capacidade do capitalismo industrial de eventualmente levar a uma ordem social mais justa.
Por exemplo, as péssimas condições de vida dos trabalhadores industriais eram vistas por muitos burgueses não como uma falha do sistema capitalista, mas como uma fase necessária e temporária na marcha do progresso.
A Juventude do Capitalismo Industrial
A burguesia frequentemente caracterizava os problemas associados à industrialização como decorrentes da “juventude” do capitalismo industrial. Acreditava-se que, assim como uma criança cresce e amadurece, o capitalismo industrial também evoluiria naturalmente para um sistema mais estável e justo. Essa visão estava intimamente ligada ao liberalismo econômico, que sustentava que o mercado livre, se não fosse perturbado por intervenções externas, encontraria um equilíbrio natural.
A Recusa à Intervenção Estatal
A ideologia liberal clássica que prevaleceu entre a burguesia do século XIX era profundamente cética em relação à intervenção do Estado na economia. Isso estava enraizado na crença de que o mercado, quando deixado livre, seria o melhor mecanismo para alocar recursos de forma eficiente.
Por exemplo, durante a Grande Fome na Irlanda (1845-1852), o governo britânico foi relutante em intervir de maneira significativa, em parte devido à crença liberal na “mão invisível” do mercado e na autossuficiência.
Pontos da Ideologia Burguesa:
a. Propriedade Privada e Liberdade Contratual: A burguesia via a propriedade privada como o alicerce da liberdade individual e social. A capacidade de fazer contratos livremente também era considerada fundamental. Acreditava-se que esses princípios permitiam que indivíduos atuassem de acordo com seus interesses, resultando em benefícios para a sociedade como um todo.
b. Obediência às Regras Econômicas: A lei da oferta e da procura e a livre concorrência eram vistas como forças quase naturais que, se respeitadas, levariam ao progresso e à prosperidade.
c. Estado Mínimo Nacional: A burguesia geralmente favorecia um estado “governando menos”, que se concentrava em funções fundamentais como manutenção da ordem, defesa do país e proteção da propriedade privada.
d. Política Externa de Paz e Liberdade Comercial: Advogavam por relações internacionais baseadas no comércio livre e pacífico, opondo-se a políticas protecionistas e imperialistas agressivas.
Adam Smith e David Ricardo foram economistas que tiveram uma influência profunda nesse período. Smith, com sua obra “A Riqueza das Nações” (1776), estabeleceu muitos dos princípios que se tornaram fundamentais para o liberalismo econômico, como a importância do livre comércio e da competição. Ricardo, conhecido por sua teoria da vantagem comparativa, também defendia o comércio livre como um caminho para a prosperidade nacional.
Resumo
No século XIX, a ideologia liberal, com sua ênfase na propriedade privada, no mercado livre e na limitação do poder do Estado, se tornou a visão de mundo dominante da burguesia europeia. Esta classe, prosperando na nova ordem industrial, via o liberalismo não apenas como um sistema econômico, mas também como uma ordem moral e natural que, apesar de seus problemas iniciais, levaria a uma sociedade mais justa e próspera.
4. Desfecho
Legalismo
No final do século XIX, o legalismo se firmou como um princípio central na vida social e política da Europa e das Américas. Este era um sistema em que a lei escrita era vista como a expressão máxima da vontade social e política. O legalismo foi reforçado pela crença liberal de que a lei, se devidamente formulada, era uma ferramenta neutra que poderia ser usada para garantir a justiça, independentemente dos interesses dos grupos de poder.
Por exemplo, muitos países emularam o modelo do Código Napoleônico na construção de seus próprios sistemas legais, buscando codificar completamente suas leis, tornando-as claras, acessíveis e racionais. Este movimento foi particularmente influente na América Latina, onde países como o Chile e a Argentina promulgaram códigos civis que eram fortemente influenciados pelo modelo francês.
Propriedade Privada
O século XIX viu o estabelecimento da propriedade privada como um direito sagrado e inviolável na maioria dos sistemas legais ocidentais. Isso foi refletido em muitas constituições nacionais que emergiram durante esse período. Por exemplo, a 14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, ratificada em 1868, tem sido interpretada para proteger o direito à propriedade privada, garantindo que nenhum Estado possa “privar qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade, sem devido processo legal”.
Autonomia Contratual
O século XIX também solidificou o conceito de autonomia contratual como um princípio fundamental do sistema legal. Isso é baseado na ideia liberal de que indivíduos são livres e racionais e, portanto, devem ter a liberdade de entrar em contratos sem interferência do Estado. Um exemplo clássico disso é o surgimento do contrato de emprego como uma relação formalizada e regulada, em contraste com as relações de trabalho mais tradicionais e hierárquicas que existiam antes da industrialização.
Estado Mínimo
A ideologia liberal do século XIX insistia que o Estado deveria ter um papel mínimo na vida dos cidadãos. Esse princípio foi encapsulado na famosa frase do presidente dos EUA, Thomas Jefferson: “O governo é melhor quando governa menos.” Neste período, havia uma forte resistência à ideia de um estado de bem-estar social. Por exemplo, na Inglaterra, as Leis dos Pobres foram reformadas para reduzir a assistência pública, refletindo uma crença generalizada de que o Estado não deveria intervir na economia.
No entanto, apesar da retórica de “Estado mínimo”, o século XIX também viu o surgimento de alguns dos primeiros esforços significativos para regulamentar condições de trabalho e promover o bem-estar público. Isso inclui, por exemplo, as leis de saúde pública na Inglaterra, que foram introduzidas em resposta às terríveis condições sanitárias nas cidades industriais.
Resumo
O século XIX solidificou a ascensão do legalismo e os princípios fundamentais da ideologia liberal na legislação e na governança. Embora o ideal fosse um Estado mínimo, a realidade complexa e muitas vezes contraditória da vida industrial levou à introdução de algumas das primeiras formas significativas de regulamentação estatal e proteção social. Isso estabeleceu o palco para os debates do século XX sobre o papel do Estado na economia e na sociedade, debates que continuam até hoje. A crença na propriedade privada e na autonomia contratual, nesse contexto, não foi apenas uma teoria econômica, mas também um princípio moral e legal central para as sociedades ocidentais.