Marx e o direito (I)
01/08/2014Durkheim e o direito
03/08/2014Toda sociedade precisa resolver, na visão de Marx, o grande problema de produzir os bens de que necessita para se manter. A resposta a esse problema é chamada modo de produção: a articulação das forças produtivas (matérias-primas, tecnologia e trabalho) por relações de produção. O modo de produção capitalista é uma possibilidade de promover essa articulação.
A obra de Marx oferece duas possibilidades de compreensão do capitalismo, que vão valorizar de modo desigual as forças produtivas. Para uma perspectiva subjetiva, o trabalho é o meio de produção mais importante; para uma perspectiva objetiva, a tecnologia o suplanta. Conforme a perspectiva adotada pelos autores marxistas, o papel do direito na sociedade mudará.
Do ponto de vista subjetivo, o trabalho é visto como a forma natural e perene de o ser humano produzir riqueza. Sem a atuação física do ser humano, transformando uma coisa em outra, não haveria riqueza. Ao resolver o problema de produzir os bens de que necessita, a sociedade deveria situar o trabalho em relação à tecnologia e às matérias-primas buscando subordiná-las a ele.
O capitalismo é interpretado como o modo de produção no qual o trabalho surge escravizado pelos burgueses, proprietários das matérias-primas e da tecnologia. Como os demais meios de produção pertencem à burguesia, ela comanda o processo produtivo de bens buscando satisfazer seus interesses próprios e não os interesses de toda a sociedade. Em outras palavras, a finalidade da produção torna-se enriquecer uma classe social em detrimento das demais, que compõem a maioria da população.
Para controlar a maioria da sociedade, a burguesia utilizaria a ideologia e a superestrutura para manter sua hegemonia. Em termos ideológicos, produziria as ideias e os valores sociais que ocultariam a dominação de classe, como a religião e a democracia, por exemplo. Em termos de superestrutura, controlaria o Estado e seu aparato, como a polícia, o exército e o Poder Judiciário para, se necessário, usar a violência contra aqueles não “convencidos” pela ideologia.
O direito, nesta leitura, é ao mesmo tempo ideologia, enquanto conjunto de valores que oculta a realidade injusta, e é o Poder Judiciário, parte do Estado, instrumentalizado pela burguesia contra a classe trabalhadora. Seu papel fundamental seria proclamar ideologicamente e proteger judicialmente a propriedade privada, sobretudo dos meios de produção.
A novidade dessa perspectiva adotada por autores marxistas em relação à obra de Marx é a possibilidade de uma revalorização do direito. Se a burguesia controla o Estado e faz do direito uma mentira ideológica, bastaria à classe trabalhadora, por meio da luta política, conquistar o Estado e utilizá-lo no sentido de transformar o direito em uma verdade não ideológica. Assim, se o direito mente ao proclamar que as pessoas são livres no capitalismo, a classe trabalhadora poderia transformar isso em uma verdade se conquistasse o Estado e o utilizasse para efetivar a liberdade prometida.
O direito não aparece ligado a um modo de produção em específico, mas ao sujeito histórico (classe social) que controla o Estado. Seu papel fundamental para a burguesia é proteger a propriedade privada dos meios de produção. Se não fizer isso, poderá servir a outras classes. Abre-se a possibilidade para existir um direito socialista e até comunista, desde que transforme a propriedade privada em propriedade coletiva.
Talvez o texto fundador dessa leitura seja o artigo Socialismo Jurídico, escrito por Engels e Kautsky em 1887, após a morte de Marx. Seu objetivo é criticar um autor (Anton Menger) que representa uma categoria de pensadores anti-Marxistas com preocupações sociais, chamados no texto de Socialistas Jurídicos.
Os autores do artigo afirmam que a burguesia, com a Revolução Francesa, conquistam o Estado e criam uma nova ideologia (concepção de mundo) para substituir a ideologia religiosa: trata-se da concepção jurídica de mundo. Ela é ideológica porque seus princípios fundamentais (liberdade, igualdade, fraternidade, propriedade…) são verdadeiros apenas para a própria burguesia, proprietária dos meios de produção. O funcionamento cotidiano do direito, por meio do Poder Judiciário, não transformaria o mundo alienado marcado pela injustiça da exploração do trabalho em um mundo efetivamente justo.
Engels e Kautsky preconizam, então, a necessidade de os trabalhadores conquistarem revolucionariamente o Estado, utilizando o direito para abolir a propriedade privada e garantir a liberdade e a igualdade para todos.
Essa perspectiva tornar-se-á hegemônica no marxismo, chegando, inclusive, a nossos dias. Sua vertente revolucionária se espalhará pelo mundo por meio do leninismo; sua vertente atenuada pela democracia representativa se converterá no pensamento dos partidos políticos (socialistas, comunistas, dos trabalhadores…). Em comum, ambas pretendem (pela revolução ou pelo voto) tomar o Estado e usar o direito a favor da classe trabalhadora.
Em termos jurídicos, o autor que dá o passo seguinte é P.I. Stutchka, um dos responsáveis pela construção do direito soviético após a revolução de 1917. Em suas obras, o autor afirma que o direito é expressão das relações de produção. Nos momentos revolucionários, atua no sentido de impedir o desenvolvimento das forças produtivas, barrando o progresso da sociedade.
A expressão jurídica das relações de produção seria a propriedade privada dos meios de produção, por meio da qual a burguesia comandaria o processo produtivo capitalista. Caberia à classe trabalhadora tomar revolucionariamente o Estado e abolir, gradativamente, a propriedade privada, criando a propriedade coletiva dos meios de produção. Esse processo seria controlado por leis e por um direito não mais burguês, porém proletário ou socialista.
Surge, assim, a ideia de que haveria um direito socialista, que corresponderia à socialização da propriedade, e teria uma duração efêmera, desaparecendo no mundo comunista, também sem Estado. O terreno está preparado para Stalin afirmar, durante a década de 1930, que a União Soviética já se tornara comunista, possuindo um Estado e um direito comunistas.
A leitura subjetiva, pois, transforma o Estado e o direito em instrumentos neutros que podem ser preenchidos por uma ideologia, se controlados pela burguesia, ou usados para promover a justiça social, se controlados pela classe trabalhadora. Podem existir tanto no capitalismo como no socialismo ou comunismo.
Mas a obra de Marx permite, sobretudo a partir de O Capital, uma outra leitura do capitalismo, objetiva, sem sobrevalorizar o trabalho. Entre os elementos das forças produtivas (matérias-primas, tecnologia e trabalho), o mais importante passa a ser a tecnologia que pode, inclusive, livrar a humanidade do fardo do trabalho.
Primeiramente, a perspectiva não foca na posição das classes no processo produtivo, mas no próprio processo que converte qualquer coisa em valor de troca. Independentemente se há burgueses controlando os meios de produção, se a propriedade está nas mãos do Estado ou dos trabalhadores, se há a geração de valor de troca, há capitalismo.
A diferenciação entre valor de uso e valor de troca antecede Marx. Um objeto tem um valor concreto, que corresponde ao uso que uma pessoa ou um grupo fará dele. Esse valor liga-se à satisfação das necessidades de quem possui o objeto, sendo maior quanto maiores as necessidades. O mesmo objeto pode possuir outro valor, de troca, que corresponde a sua cotação monetária no mercado. Quanto as pessoas estão dispostas a pagar pelo objeto? Esse será seu valor de troca.
O capitalismo, assim, é um modo de produção que converte tudo, coisas, pessoas, ideias, em valores de troca. As coisas são produzidas não para satisfazerem as necessidades coletivas (valores de uso), mas para serem compradas, concretizando os valores de troca. O problema é que não há uma relação necessária entre os dois valores. O valor de troca é abstrato e pode, inclusive, produzir um falso valor de uso para um objeto. Um bem sem qualquer utilidade pode ser vendido a um preço fantástico, possuindo elevado valor de troca.
A violência do capitalismo está nessa irracionalidade de manipular as forças produtivas da sociedade não pensando na produção de coisas conforme seus valores de uso, satisfazendo necessidades reais, mas focando no valor de troca e em necessidades artificiais. O trabalho, a tecnologia e as matérias-primas são articulados em nome dessa produção abstrata. Em nome dela, o trabalho é explorado, a tecnologia subutilizada e as matérias-primas esgotadas.
Na busca frenética dos capitalistas por aumentar os lucros produzindo quaisquer coisas que tenham valor de troca, surge, entre eles, a disputa por consumidores, chamada de concorrência. Para venderem mais, os capitalistas procuram produzir a um custo menor, podendo baixar os preços.
A primeira solução para diminuir os custos é diminuir os salários e aumentar a duração da jornada de trabalho. O mesmo trabalhador, ganhando menos e trabalhando mais, produzirá mais produtos que custarão menos para o capitalista. Esses produtos serão vendidos a um preço menor e poderão aumentar os lucros, além de ampliar o mercado consumidor.
Todavia, uma segunda concorrência surge em virtude dessa solução, inviabilizando-a: a disputa entre capitalistas e trabalhadores. Os trabalhadores começam, durante o século XIX, a se unir e a reivindicar direitos que limitem a exploração sofrida durante o trabalho. Esses direitos são conquistados principalmente no início do século XX e determinam uma jornada de trabalho fixa, além de um salário-mínimo.
A partir de então, limitado o potencial de explorar a mão-de-obra, a solução para diminuir custos passa a ser o investimento em tecnologia, que se torna o elemento mais importante das forças produtivas. Se o capitalista não pode aumentar a jornada de trabalho nem reduzir salários, deve baratear os produtos aumentando a produtividade de cada trabalhador. Para isso, a tecnologia de produção deve ser aperfeiçoada.
O uso intensivo da tecnologia desvaloriza gradativamente o trabalho humano que pode, no extremo, ser abolido. Mas o que seria a libertação da humanidade pode converter-se na miséria e no descarte social da maioria. Aos poucos o número de pessoas necessárias para a produção dos bens de que a sociedade necessita diminui, aumentando os desnecessários.
Essa lógica, na opinião de Marx destacada no livro III de O Capital, seria fatal para o próprio capitalismo. Haveria uma tendência decrescente da cota de lucro com o aumento do uso da tecnologia na fase produtiva. O aumento da produtividade e o barateamento generalizado das mercadorias exigiria que um número cada vez maior delas fosse vendido para o capitalista ter a mesma parcela de lucro que tinha quando as vendia mais caras. Porém, com o crescimento no número de desempregados, menos pessoas poderiam comprar. Chegaríamos a um momento em que a tecnologia permitiria produzir tantas mercadorias em tão pouco tempo, que seu preço seria muito pequeno. Essas coisas, já sem valor de uso, perderiam também o valor de troca: seria o colapso do capitalismo.
Alguns autores como Robert Kurz avaliam que esse colapso já ocorre no presente. Se pensarmos no caso brasileiro, percebemos que há uma tentativa de ampliar a fatia de consumidores por meio de um uso excessivo da publicidade, que busca convencer o comprador a adquirir objetos com valores de uso artificialmente inflados. Também notamos o aumento exacerbado do chamado microcrédito, o financiamento concedido a pessoas de baixa renda, permitindo a aquisição de mais e mais bens. Por fim, notamos uma tendência de concessão de bolsas sociais para camadas da população descartadas pela produção capitalista, que não são nem nunca serão trabalhadores, mas precisam, em nome do sistema, ser consumidores.
Destaquemos que a leitura objetiva busca ater-se a uma análise econômicado capitalismo. Sua superestrutura e sua ideologia são deixadas de lado. O direito é apenas um instrumento capitalista, que busca criar alternativas para a manutenção do sistema (microcrédito, bolsas sociais…), não podendo ser utilizado para sua superação. Do mesmo modo a política e o Estado.
Claro que uma leitura dessas não se torna muito popular entre partidos políticos e grupos de trabalhadores. O processo econômico envolvendo a tecnologia pode levar à superação do capitalismo, não aquele comandado por partidos ou sindicatos. A sociedade do futuro possuirá trabalhadores, mas serão completamente diferentes dos atuais. Talvez haja um direito, mas sem normas gerais e abstratas.
Um autor funda uma possibilidade de leitura objetiva do direito, E.B. Pachukanis. Durante a década de 1920, na União Soviética, estuda a forma jurídica, relacionando-a com a forma mercadoria. Em outros termos, conclui que o direito é uma aparência das relações econômicas capitalistas, só fazendo sentido se for uma superestrutura delas.
Segundo Pachukanis, os elementos essenciais das relações jurídicas aparecem na relação de troca de mercadorias, que movimenta o capitalismo. Numa relação de troca, há pessoas que, em condição de igualdade, negociam um preço e livremente chegam a um acordo, celebrando a compra e venda. Ora, aí encontramos, na perspectiva do direito, pessoas, bens, liberdade e igualdade, elementos e princípios jurídicos fundamentais.
Como no capitalismo todos participam a todo momento de relações de troca, generalizadas pela sociedade, todos podem ser vistos como sujeitos de direito, dotados de personalidade. Se pensarmos no Brasil do século XIX, por exemplo, nem todos podiam participar de relações de troca mercantil como compradores ou vendedores; assim, nem todos eram pessoas: havia escravos, seres humanos que eram equiparados a bens, sem personalidade jurídica. Hoje, todos estamos, todos os dias, comprando ou vendendo bens, serviços e força de trabalho.
A relação de troca mercantil ainda fornece ao direito seu conceito mais nobre: a noção de justiça. Uma troca será considerada justa se o preço cobrado pelo produto for equivalente ao preço pago por ele; caso uma pessoa pague menos ou mais do que o preço cobrado, a troca terá sido injusta. A justiça consiste em haver equivalência entre os objetos analisados pelo direito: uma pena será justa se for proporcional à gravidade do delito; um tributo será justo se for proporcional à riqueza manifestada pelo contribuinte.
Só podemos medir coisas diferentes com um critério comum porque elas possuem algo em comum. Esse algo não é, economicamente, o valor de uso, que varia de coisa para coisa. É o valor de troca, abstrato, que se materializa em dinheiro. Pois a noção de justiça depende da noção de valor de troca, não podendo existir nem fazer sentido sem ela.
O direito, assim, parece olhar para coisas e pessoas buscando ver não seres concretos (com “valor de uso”), mas seres abstratos (com “valor de troca”). Somente assim pode encontrar critérios gerais para tratar, por meio de normas jurídicas legais, de todos indistintamente.
Só uma visão intrinsecamente presa à noção de troca mercantil pode encontrar um interesse comum a todos na sociedade, qual seja, a equivalência das trocas. A visão jurídica, assim, preconiza o “bem comum”, que consiste no respeito à equivalência das trocas e no cumprimento dos contratos. Pode, com isso, surgir um Estado que afirma servir não a uma parte nem a outra dos negociantes mercantis, mas a ambos.
A análise pachukaniana revela que não é possível existir um direito que não seja mercantil e capitalista. Só há direito onde há relação de troca mercantil. Se o comunismo abole a troca mercantil, abolindo o valor de uso, então não pode existir um direito comunista. Tampouco pode existir um direito socialista, pois durante a transição entre o capitalismo e o comunismo, restam relações mercantis a serem abolidas, restando ainda um direito capitalistaa ser abolido.
A conclusão óbvia a que se chega é: se há um Estado, se há um direito, isso significa que ainda há, em algum grau, capitalismo e relações de troca mercantis. Ainda que esse Estado se proclame socialista ou comunista, dizendo o mesmo do seu direito, isso nunca poderá ser verdade.
A força crítica do raciocínio de Pachukanis lhe custou muito caro: durante a década de 1930, como já dito, Stalin proclama que a União Soviética é comunista. Como ainda há um Estado e um direito, Pachukanis diverge. Ele se torna inimigo do Estado e é “desaparecido” em 1937.
Referência:
FERREIRA, Adriano de Assis. Questão de Classes: direito, estado e capitalismo em Menger, Stutchka e Pachukanis. São Paulo: Alfa-omega, 2009.