Habermas e o direito
07/08/2014Foucault e o direito
09/08/2014Niklas Luhmann (1927-1988) é um dos sociólogos mais interessantes do século XX. Sua perspectiva da sociedade mescla a visão sistêmica de Parsons a concepções derivadas das ciências biológicas. Embora trate de diversos assuntos, o direito é um de seus objetos de estudo mais importantes. Seu pensamento influencia, por sua vez, muitos sociólogos do direito.
Sua análise da sociedade parte da constatação de que esta é constituída, pela comunicação, sobre um ambiente. Nesse ambiente, encontram-se a vida orgânica, os indivíduos (seres psíquicos) e a matéria física. Quando os indivíduos se comunicam, fundam a sociedade. Destaquemos que a palavra comunicar deriva do mesmo radical latino que forma “comunidade”, “comum” e “comunhão”, entre outras que dão o sentido de compartilhar.
A comunicação, para Luhmann, pode ser descrita como um processo subjetivo em que uma informação é selecionada e transmitida. O recebimento dessa informação, contudo, não garante que ela será compreendida. Sua compreensão pode exigir mais comunicação, num processo que tende ao infinito.
Assim, por exemplo, um professor transmite uma frase para os alunos. Todos receberam a mensagem, mas sua compreensão exige que o professor se comunique mais e mais, explicando o significado dessa frase.
Luhmann considera a sociedade moderna complexa, derivada da desagregação de valores universais que davam coesão à sociedade religiosa que a antecede. Quando desaparece um discurso último unificador, cuja verdade não é questionada, a comunicação pode ocorrer tratando de quaisquer assuntos e torna-se imprevisível. Destacamos a semelhança desse ponto de partida com o pensamento de outros sociólogos e de Habermas, para os quais a falta de unidade religiosa é um marco da modernidade.
Voltando a Luhmann, antes da modernidade, todas as comunicações no mundo ocidental convergiam para respostas religiosas, havendo limites quanto às problematizações e aos significados dos discursos. Com o enfraquecimento da religião, a sociedade passa a poder comunicar-se sobre tudo e tem a necessidade de produzir novas comunicações que expliquem as anteriores de modo incessante.
Dizer que a sociedade moderna é complexa, portanto, significa que um indivíduo possui infinitas alternativas e possibilidades no momento em que se comunica. Isso causa, também, sua imprevisibilidade. Numa sociedade medieval, por outro lado, cada indivíduo estava limitado a possibilidades comunicativas conforme seu papel social, que não pode mudar, pois deriva de uma ordem divina.
Imaginemos uma sala de aula, sem o professor, durante o intervalo. Sobre qual assunto os alunos conversam? A quais rumos a conversa será levada? Não podemos prever.
Todavia, essa comunicabilidade infinita pode causar problemas para a sociedade. Existem assuntos que não podem ser discutidos interminavelmente, pois levam a situações em que decisões precisam ser tomadas, resolvendo problemas ou determinando rumos. A sociedade deve produzir e distribuir bens, prevenir e solucionar conflitos, consagrar determinados valores e repudiar outros.
Para impedir que essa comunicabilidade infinita atrapalhe o funcionamento da sociedade, surgem os sistemas sociais. São sistemas comunicativos que reduzem a complexidade social em determinados setores, permitindo que funcionem de modo satisfatório, por meio de códigos próprios. Cada um desses sistemas cumpre, assim, funções na sociedade, diferenciando-se do todo graças a sua comunicação específica, que deriva desses códigos.
Voltemos à sala de aula. O professor inicia sua aula de sociologia do direito. A qualquer momento um aluno pode fazer uma pergunta sobre qualquer assunto. Se todo aluno se manifestar sobre assuntos os mais diversos, o professor não cumprirá sua função específica, lecionar a disciplina. Para evitar isso, o professor estabelece um código que limita as comunicações possíveis: durante a aula, por exemplo, toda comunicação deve versar sobre sociologia jurídica (e, talvez, o tema específico da aula). Assim, a complexidade da sala de aula é reduzida pelo código “ser assunto de sociologia do direito” e “não ser assunto de sociologia do direito”. Não é mais qualquer comunicação sobre qualquer assunto que ocorrerá durante a aula, mas apenas aquelas que correspondam à disciplina que será, então, lecionada. Forma-se um sistema dentro da Universidade.
O sistema social é fechado operacionalmente, ou seja, funciona conforme dois pressupostos: auto-organização e autopoiesis. Auto-organização significa que cada sistema produz sua própria estrutura, delimitando suas fronteiras e estabelecendo o que pode ser comunicado conforme seu código e o que não pode ser comunicado. Autopoiesis significa que cada novo elemento do sistema (cada nova comunicação) será produzido a partir de pressupostos fornecidos pelo próprio sistema.
Se voltarmos outra vez ao exemplo da sala de aula, agora transformada em um sistema da disciplina sociologia do direito, perceberemos que, no momento em que se definir o que é sociologia do direito, serão também delimitadas as fronteiras do sistema, determinando-se o que pertence e o que não pertence a ele. Ainda, quando os temas da disciplina forem definidos, será delimitada uma estrutura interna do sistema. Assim, no nosso caso, o próprio professor de sociologia do direito vai se comunicar para dizer que a sala só pode tratar do assunto de sua disciplina e, em seguida, irá defini-la e segmentá-la em temas. Note: isso não será feito pelo professor de outra disciplina, mas pelo próprio professor de sociologia do direito.
Depois de definir a disciplina e seus temas, toda nova comunicação sobre cada um dos temas partirá dessa definição genérica. Sendo assim, podemos dizer que o sistema “disciplina sociologia do direito” é autopoiético, pois cada nova comunicação é produzida a partir de pressupostos contidos nas anteriores, internos ao sistema. Em última instância, existem os princípios que delimitam a disciplina, dos quais toda comunicação partirá. O professor lecionará sociologia do direito falando conforme os termos definidos pela própria sociologia do direito. Quando explicar um conceito, o fará utilizando outros conceitos pertencentes ao sistema.
O mesmo se passa com os sistemas sociais. Podemos pensar no sistema político, no sistema jurídico, no sistema econômico, entre outros. Cada um deles possui um código próprio que delimita o teor das comunicações que produzem; cada nova comunicação produzida decorre de outras comunicações pertencentes ao sistema. O sistema político, cujo código é governo x oposição, só produz comunicações a partir desse código. Toda fala política parte do sistema e tem por fim a manutenção ou a obtenção do poder.
Embora os sistemas sejam operacionalmente fechados (auto-organizados e autopoiéticos), existem em um ambiente que pode “irritá-los”. Como o ambiente de um sistema social é composto não apenas pela matéria física e orgânica, mas também por todos os outros sistemas sociais, a “irritação” comumente é causada por um sistema no outro.
Por exemplo: a política, como visto, opera com o código governo x oposição; a economia opera com o código dinheiro x não-dinheiro. O funcionamento do sistema político, no qual partidos discutem pelo poder, pode ser perturbado pela lógica do sistema econômico, no qual os agentes discutem pelo dinheiro.
Quando há uma “irritação”, duas coisas podem ocorrer: ela pode ser repelida pelo sistema, que continua a funcionar conforme seu código próprio; ou ela pode ser absorvida pelo sistema. Neste caso, o sistema transforma a perturbação em uma comunicação que utiliza seu código próprio. Podemos pensar em decisões jurídicas que usam o código do direito (lícito x ilícito) mas derivam de “irritações” políticas ou econômicas.
Para Luhmann, o direito é um sistema social. Como dito, seu código é lícito x ilícito (ou direito x não-direito). As comunicações produzidas por ele têm por finalidade indicar se um fato ou um ato é lícito ou não, estabelecendo eventuais sanções. Seu funcionamento segue um programa: “se… então…”. Caso uma hipótese prevista em lei ocorra (“se”), deve ocorrer uma consequência ou uma determinada decisão deve ser tomada (“então”).
Trata-se, como os demais, de um sistema operacionalmente fechado. A Constituição Federal, no caso do sistema jurídico brasileiro, que é sua parte integrante, define sua estrutura e suas fronteiras, estabelecendo os princípios dos quais partirão todas as demais decisões que criam normas jurídicas (em leis, sentenças e contratos). A teoria geral do direito estabelece os mecanismos gerais de funcionamento do sistema, indicando critérios de validade e interpretação das normas (auto-organização). Toda nova norma jurídica (que é um texto comunicativo) deve ser criada a partir de elementos contidos em outras normas superiores ou nos princípios constitucionais (autopoiese).
Uma marca do direito moderno, para Luhmann, é a positividade. As normas jurídicas (em leis, sentenças e contratos) derivam de decisões tomadas por pessoas competentes e/ou capazes. Cada norma criada deriva de uma decisão tomada por uma autoridade que se comunica partindo de outras decisões anteriores que foram tomadas e comunicaram normas superiores. Assim, o legislador decide (por votação) e cria uma lei; essa decisão pressupõe decisões que foram tomadas pelo poder constituinte originário, criando o próprio poder legislativo e lhe atribuindo, dentro de limites, competência para criar leis. O conteúdo dessa lei deve seguir o conteúdo da Constituição.
Há, contudo, um aparente paradoxo. O direito é um sistema social, nascendo para reduzir a complexidade do ambiente, permitindo que conflitos sejam evitados e resolvidos. Para tanto, suas comunicações limitam-se ao código lícito x ilícito, conforme seu programa. Mas a busca dessa redução de complexidade exige que mais e mais novas comunicações internas ao sistema sejam feitas, para prever todos os comportamentos sociais e para transmitir certeza e segurança quanto ao seu conteúdo. Essas novas comunicações, por sua vez, embora dentro do código do direito, geram uma nova complexidade, que o distancia da realidade e o torna assunto de especialistas.
Se pensarmos nas aulas de disciplinas dogmáticas, muitas vezes essa situação é visível. O professor costuma lecionar sobre uma lei, explicando o significado de seus artigos. Ora, essa lei já foi uma tentativa de reduzir a complexidade por meio do código jurídico. Assim, o professor leciona sobre a comunicação jurídica, gerando novas comunicações que a explicam e exigem explicações da explicação, e pouco fala do ambiente social complexo que antecede a lei. Compreender o direito exige a compreensão dessas comunicações, afastadas da realidade.
Reiteramos o paradoxo: o direito tenta simplificar a realidade por meio de seu código mas, ao fazê-lo, cria tantas comunicações sobre si mesmo que gera uma nova complexidade, embora limitada por esse código.
O ambiente do direito é composto por todos os outros sistemas sociais. Ainda que operacionalmente fechado, ambos se relacionam produzindo “irritações”, como descrito acima. Mas as “irritações” só são absorvidas se transformadas no código próprio do direito.
Verificamos isso nas relações do direito com a moralidade. Esta funciona com o código bom x ruim. Uma situação avaliada como ruim pelo sistema moral pode ser considerada lícita pelo direito, e o contrário. Para que o sistema moral interfira no direito é necessário que seu juízo seja convertido no código lícito x ilícito, passando a operar como comunicação jurídica interna. Do contrário, persistirá o fechamento.
No caso do sistema político, que funciona conforme o código governo x oposição, a situação se repete com um agravante: existem elementos que são comuns a ambos, como a lei e a Constituição, gerando o que Luhmann denomina de acoplamentos estruturais (pontos de contato entre sistemas).
As discussões parlamentares resultam na criação de leis. Do ponto de vista político, essas leis fortalecem ou enfraquecem o governo. Mas elas se tornam também elementos do sistema jurídico, que sofre pressões políticas. O direito responde a essas pressões tirando o foco de suas comunicações da lei e seu caráter partidário e enfatiza sua interpretação e aplicação nas cortes, conforme o código jurídico (lícito x ilícito). Discute-se a “juridicidade” da lei e das situações de que ela trata, abordando-se temas como sua validade ou a necessidade de aplicação de sanções.
Também a Constituição gera acoplamento entre o direito e a política. A partir do momento em que ela delimita cada um desses sistemas, organizando a representação política e delimitando as competências judiciais, ela os conecta ao pertencer a ambos. Os sistemas funcionam a partir de normas e princípios constitucionais e por meio deles podem trocar “irritações”.
Destaca-se, no Brasil, nesse ponto de contato, o Superior Tribunal Constitucional. Ao interpretar juridicamente a constituição que delimita as fronteiras entre o direito e a política, suas decisões devem pertencer necessariamente ao sistema jurídico, operando com o código lícito x ilícito convertido em constitucional x inconstitucional. Mas essa fala recoloca as fronteiras e reestrutura o próprio sistema jurídico, convertendo-se, em última instância, em uma escolha que pode sofrer interferências do sistema político e, até mesmo, do sistema econômico. Podemos dizer que o STF encontra-se em estado de perpétua “irritação”, podendo repelir ou absorver (convertidas no código jurídico) essas “irritações” conforme a posição ocupada pelo sistema jurídico em seu ambiente.
Referências:
- CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial. São Paulo: Max Limonad (Introdução).
- DEFLEM, Mathiew. Sociologyof Law. Cambridge: CUP, 2008.
- LIMA, Fernando Rister de Sousa. Sociologia do Direito – o direito e o processo à luz da teoria dos sistemas de NiklasLuhmann. Curitiba: Juruá, 2009.
- RODRIGUES e SILVA. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013.