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As lacunas no direito brasileiro são situações em que o ordenamento jurídico não possui uma norma específica para regular determinada matéria. Essas lacunas podem ser preenchidas por meio de mecanismos previstos na legislação, como a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.
O ordenamento jurídico brasileiro possui a presunção de completude, que é baseada no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal: se algo não é proibido ou obrigatório por lei, é permitido. No entanto, o direito não é lógico, mas axiológico, ou seja, os valores podem influenciar os juízes a perceber a necessidade de proibir ou obrigar um comportamento não previsto em lei. Um exemplo disso são os chamados direitos difusos, como o meio ambiente, que, mesmo antes da existência de leis específicas, já eram objeto de proteção pelos tribunais.
Para lidar com as lacunas, o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) estabelece que, na ausência de legislação específica, o juiz deve preencher a lacuna por analogia, costumes e princípios gerais do direito.
A analogia é o método de aplicação de uma norma prevista para um caso semelhante ao que não está regulamentado em lei. Por exemplo, o uso da analogia no Direito Penal para estender a proteção da Lei Maria da Penha a casos de violência doméstica contra homens.
O costume é uma prática reiterada que, mesmo sem previsão legal, é considerada como direito pelos membros da sociedade. Um exemplo é o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, antes da existência de legislação específica.
Os princípios gerais do direito são as ideias fundamentais e abstratas que orientam a criação e a interpretação das normas jurídicas. Um exemplo é a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana para garantir o acesso à saúde, mesmo quando o tratamento não está previsto em lei.
Há controvérsias sobre a ordem de utilização desses mecanismos de preenchimento da lacuna, sendo discutido se o juiz pode usar qualquer deles ou deve tentar preencher usando primeiro a analogia, depois o costume e, por fim, o princípio.
Além disso, existem ramos do direito com previsão própria para o preenchimento da lacuna, como o artigo 108 do Código Tributário Nacional e o artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), desenvolvidos abaixo.
Em conclusão, as lacunas no direito brasileiro são inevitáveis, mas a legislação prevê mecanismos que auxiliam os juízes a lidar com essas situações, garantindo a efetividade do ordenamento jurídico e a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Preenchimento da lacuna no direito tributário e no direito do trabalho
Além das regras gerais previstas na LINDB, existem regras especiais para preenchimento da lacuna no ordenamento jurídico brasileiro. Vejamos os mencionados casos do direito tributário e do direito do trabalho.
No âmbito do direito tributário, o artigo 108 do Código Tributário Nacional (CTN) estabelece regras específicas para o preenchimento de lacunas. O juiz deve preencher a lacuna usando os mecanismos previstos em ordem: I – a analogia; II – os princípios gerais de direito tributário; III – os princípios gerais de direito público; IV – a equidade.
O parágrafo único desse artigo determina que a analogia somente será aplicada para interpretar e integrar a legislação tributária, mas nunca para criar novos tributos ou aumentar o valor dos existentes. Essa limitação é importante, pois resguarda o princípio da legalidade tributária (art. 150, I, CF), segundo o qual somente a lei pode criar ou aumentar tributos.
Um exemplo de aplicação desse dispositivo no direito tributário é a analogia entre os serviços de streaming e a incidência do Imposto sobre Serviços (ISS). Mesmo que a lei não preveja expressamente a tributação de serviços de streaming, pode-se aplicar, por analogia, a incidência do ISS prevista para serviços de comunicação e radiodifusão.
O inciso IV do citado artigo 108 indica a equidade como um dos métodos a serem utilizados pela autoridade competente para aplicar a legislação tributária. A equidade é mencionada em último lugar na ordem de métodos de interpretação a serem utilizados, após a analogia (inciso I), os princípios gerais de direito tributário (inciso II) e os princípios gerais de direito público (inciso III). O §2º limita o uso da equidade, estabelecendo que ela não pode resultar na dispensa do pagamento de tributo devido.
Equidade, assim, significa julgar conforme a consciência pessoal do juiz. Em não conseguindo resolver o problema tributário pelos outros métodos, o juiz deverá decidir do modo como reputar mais justo, apenas não podendo dispensar o pagamento de um tributo.
No caso do direito do trabalho, o artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) determina que as autoridades competentes e os juízes do trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, devem decidir os conflitos trabalhistas “pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado”. Esse dispositivo visa garantir a proteção dos direitos dos trabalhadores, mesmo quando não houver uma norma específica para regular determinada situação.
Um exemplo de preenchimento de lacuna no direito do trabalho é o reconhecimento do teletrabalho (ou home office) como modalidade válida de contrato de trabalho, mesmo antes da reforma trabalhista de 2017. Os juízes aplicaram, por analogia, os princípios e normas gerais do direito, considerando os usos e costumes, para assegurar os direitos dos trabalhadores em teletrabalho, como jornada de trabalho adequada e garantia de condições dignas de trabalho.
Em ambos os ramos do direito, o preenchimento de lacunas é crucial para garantir a justiça e a efetividade do ordenamento jurídico. No direito tributário, as normas específicas visam resguardar os princípios constitucionais, como a legalidade tributária, enquanto no direito do trabalho, o objetivo é proteger os direitos dos trabalhadores e assegurar condições dignas de trabalho.