Norma jurídica: estrutura
11/06/2011Marco Túlio Cícero (106 a.C. – 43 a.C.)
12/06/2011Helenismo: introdução; ceticismo
Após a consolidação da tradição socrática, com filósofos de excepcional qualidade como Platão e Aristóteles, seria natural supor que outras correntes filosóficas subsequentes fossem desvalorizadas pelos estudiosos. Essa desvalorização, contudo, esconde um período bastante rico e cujas escolas deixam influências marcantes até o presente.
De um modo genérico, podemos designar por helenismo o período que se inicia com Alexandre Magno (ou depois de sua morte, em 323 a.C.) e termina com o fim da República Romana, em 31 a.C.. Nesse período, a língua e a cultura gregas tornam-se hegemônicas no mundo ocidental e nas terras conquistadas por Alexandre. Na filosofia, usa-se o termo para designar as três correntes filosóficas que se tornam predominantes: ceticismo, epicurismo e estoicismo.
Embora sejam escolas bastante distintas entre si, há alguns traços comuns, segundo Marilena Chauí:
1. Muito embora coloquem-se como adversários de Platão e Aristóteles, os filósofos do helenismo adotam a tripartição do estudo da filosofia proposta por Xenócrates, filósofo socrático que dirigiu a Academia platônica entre 339 e 314 a.C.: a) Lógica: estudo do raciocínio, do discurso racional, do conhecimento; b) Física: estudo da Natureza; c) Ética: estudo da natureza humana, da conduta e da vida feliz.
2. Enquanto Platão e Aristóteles adotavam as normas criadas pela política como fundamento para a ação ética, levando à completude entre a política, a ética e o direito, os filósofos epicuristas e estoicos defendem que a ação ética deve respeitar as normas naturais, rompendo a completude. Ambos transformam a natureza no fundamento da ética, exigindo o conhecimento da phýsis para a descoberta da vida feliz, e afastando a política da conduta humana. Elaboram, assim, um “naturalismo ético”.
3. As filosofias helenistas (sobretudo epicurismo e estoicismo) são materialistas, ou seja, recusam-se a explicar os fenômenos naturais e éticos a partir de entidades imateriais ou incorporais. Todos os fenômenos devem ser explicados a partir das características da própria natureza, não havendo um kósmos universal ou sobrenatural. A natureza torna-se o universo, sendo sua composição a explicação de tudo.
4. As filosofias tornam-se “sistemas”, ou seja, um conjunto coeso e coerente de saberes, havendo uma profunda articulação entre a física, a lógica e a ética. Dado o materialismo acima exposto, a compreensão da física (natureza) leva, necessariamente, aos aspectos fundamentais da lógica e explicita as normas que devem ser seguidas pelo indivíduo em sua ação ética.
5. Seguindo o exemplo de Platão e Aristóteles, formam-se escolas filosóficas para disseminar os ensinamentos epicuristas e estoicos.
6. O filósofo torna-se uma figura serena, acima do turbilhão dos acontecimentos cotidianos, um sábio que não se deixa abater pelo infortúnio ou corromper pela boa fortuna. Seus ensinamentos tornam-se medicamentos que podem ensinar as pessoas a também serem serenas, promovendo uma terapia da alma e levando à verdadeira felicidade.
7. As correntes filosóficas são marcadas por um acontecimento histórico fundamental: o fim da Pólis (cidade) livre e democrática. Até então, a cidade, soberana e independente, era o referencial filosófico e existencial dos gregos. A condição de habitar em sua cidade natal e participar da vida coletiva era essencial para transformar o ser humano, de animal, em um ser superior e livre. Isso diferenciava, inclusive, os gregos dos bárbaros. Com o desaparecimento da Pólis, os filósofos adotam a natureza universal como paradigma, fundindo nela o kósmos e a antiga Pólis, estabelecendo um novo conceito, a kosmópolis, ou o cosmopolitismo. A partir de então, o fundamento para a diferenciação entre o grego e o bárbaro desaparece e o ser humano pode ser considerado um cidadão do mundo, surgindo as condições para a defesa da universalidade do gênero humano.
Talvez em virtude do clima geral de decepção, entre os gregos, decorrente da perda da liberdade, surge, com Pirro (n. 365 a.C.) e Tímon (n. 325 a.C.), um movimento que será denominado de ceticismo. O ponto de partida dos céticos é o da inexistência de qualquer base sólida para os seres humanos chegarem ao verdadeiro conhecimento ou à fé verdadeira.
Relativamente ao conhecimento verdadeiro, as pessoas podem chegar a ele por meio dos sentidos (empiricamente), pelo consenso das convenções ou pela razão. Todavia, afirmam os céticos, nenhum desses caminhos é, efetivamente, seguro.
Os sentidos são muito subjetivos, cada indivíduo experimenta uma mesma sensação de modos bem diversos: o que para um é quente, para outro é frio; o que para um é escuro, para outro é claro. Isso inviabilizaria um conhecimento verdadeiro sobre a coisa analisada.
Os consensos, que derivam das discussões e das convenções, por seu turno, são muito inseguros e variáveis. Um consenso obtido em determinado local sobre um assunto pode ser o oposto daquele obtido em outro local. Ainda podemos admitir que os participantes de uma discussão, algum tempo após terem chegado a um consenso, mudem de opinião, causando maior insegurança. Assim, também não podemos tomar o consenso como suscetível de levar ao verdadeiro conhecimento.
Quanto à razão, ou lógos, também não é considerada, pelos céticos, como um caminho infalível que leva à verdade, pois possuiria muitas limitações e contradições. Haveria coisas inexplicáveis racionalmente, por um lado. Haveria também situações em que o raciocínio lógico se revelaria contraditório ou insuficiente. Um exemplo é a afirmação “eu minto”. A razão não conseguiria resolver o problema de afirmar se a pessoa mente ou diz a verdade relativamente à própria frase.
Constatando que o cético não acredita que o ser humano possa chegar ao verdadeiro conhecimento, sua atitude se transforma em um questionamento incessante, para mostrar aos demais as parcialidades dos conhecimentos atingidos. O ponto final desse questionamento, ao contrário do que pode parecer, é justamente uma postura serena e de tranquilidade, assumindo as limitações racionais e pacificando o espírito.
Dada a postura do cético da dúvida constante, fica difícil admitir que se forme, propriamente, uma “escola” para transmissão de seu pensamento. Devemos encarar o ceticismo como aquela atitude cética que inspira novos filósofos, buscando curar o ser humano do dogmatismo e impedindo-o de fazer julgamentos precipitados.
Tendo-se em vista as características gerais das filosofias helenistas, ainda assim, é possível inserir o ceticismo como uma de suas correntes. Ainda hoje encontramos pessoas que afirmam assumir tal postura, mesmo que nem sempre com a profundidade de seus inspiradores mais remotos.
Referência:
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia 2 – as escolas helenistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (pp. 13-69)
Helenismo: epicurismo
Entre os filósofos helenistas, Epicuro (341-270 a.C.) talvez seja aquele cuja imagem seja a mais negativa. Seu pensamento rompe com os pressupostos tradicionais da filosofia clássica grega e, talvez por isso, tenha causado tanta ira em seus contemporâneos e até em filósofos posteriores, como os cristãos.
Entre outras coisas, Epicuro retoma o atomismo como fundamento de suas teorias físicas, desenvolvendo a ideia de que tudo é composto por átomos que se chocam. Afasta, com isso, a perspectiva de a natureza ser regida por uma razão superior ou pelos deuses, defendendo que o movimento dos átomos poderia explicar todos os fenômenos. Ainda, afirma que o verdadeiro conhecimento é sensorial e defende que as ações devem ser norteadas pela busca do prazer.
Suas ideias foram disseminadas na Escola do Jardim, criada em sua residência, em local afastado do centro de Atenas. Essa localização física reflete a postura dos epicuristas: buscam o afastamento da vida pública, esperando da cidade apenas a garantia da paz e da segurança, e isolam-se no jardim.
A filosofia epicurista rompe com a noção dos filósofos socráticos de que deveria haver uma identidade entre o indivíduo e o cidadão, sendo a política condição para transformar o animal no ser humano. Para Epicuro, ao contrário, a política é inútil e o filósofo, que busca a felicidade, deve viver em isolamento. Assim, o indivíduo não se preocupa com a política e não assume a condição de cidadão para se tornar humano.
O ponto de partida para a compreensão do epicurismo é sua física, ou seja, sua noção de natureza. Epicuro afirma que tudo é composto de átomos, desde os objetos até os pensamentos. O átomo é a menor partícula da natureza, sendo indivisível, portanto. Sua estrutura é sólida e compacta, não havendo vazio dentro dele, mas apenas sua própria matéria. Por fim, o átomo, em si, é eterno, nunca deixando de existir, apenas compondo ou deixando de compor as coisas que forma.
Os átomos cairiam eternamente no vazio, que é infinito. Haveria uma espécie de “chuva” de átomos, caindo paralelamente, de modo contínuo, em um espaçamento constante, sem qualquer choque entre eles. Como o universo é vazio e nada interfere nessa queda, a tendência é que o átomo se conserve em sua rota, para sempre, sem perturbações.
Todavia, os átomos possuiriam uma propriedade inexplicável para nós: de modo espontâneo, indeterminado e aleatório, alguns desses átomos se desviam de seu curso e passam a se chocar com os outros, que também saem, com o choque, de rota, formando os corpos compostos.
É importante ressaltar que a mudança de curso é espontânea, ou seja, não é motivada por uma força motriz externa, seja racional, seja divina. Também é indeterminada, pois não conseguimos explicar exatamente sua causa. E, ainda, é aleatória, pois não podemos dizer quando ocorrerá, mas apenas que pode ocorrer em algum momento (ou não).
Tais propriedades do desvio do átomo podem causar grande espanto ao filósofo de tradição socrática, acostumado a encontrar uma razão que explique tudo, ou uma ideia superior à realidade. Epicuro traz, para usarmos uma expressão corriqueira à física contemporânea, um princípio da incerteza como fundamento da formação da matéria, admitindo uma limitação à nossa capacidade racional.
Tendo-se em vista as características da natureza, podemos compreender a teoria do conhecimento de Epicuro. Primeiramente, ele considera que o fundamento do conhecimento é a sensação. Se as coisas são compostas de átomos, nosso corpo sentiria o impacto de alguns desses átomos, entrando em contato com o próprio objeto, e “desenhando” sua imagem em nossa mente, permitindo o conhecimento da coisa.
Assim, a visão corresponderia ao impacto de átomos emanados por um objeto em nossos olhos, formando uma “imagem” do objeto, também composta por átomos, que ficaria “guardada” em nosso cérebro, permitindo o conhecimento do objeto original.
A repetição de algumas sensações levaria à formação de “pré-noções”, ou “desenhos” padronizados dos objetos com os quais nos relacionamos mais comumente. Graças a essas “pré-noções” poderíamos pensar: mesmo sem ver os objetos, manipulamos os átomos que compõem seus desenhos padronizados em nosso cérebro, formando os raciocínios.
Tal concepção explica, também, o conhecimento equivocado. Podemos ver um objeto, a uma certa distância, de um modo desfocado, pois os átomos que chegam a nossos olhos chocam-se com inúmeros outros que percorrem essa distância. Então, podemos completar a imagem com uma “pré-noção” equivocada, fazendo um falso juízo do objeto.
Todos os corpos emanam átomos que se chocam com nosso corpo, causando sensações que ficam arquivadas. Além dessas sensações, duas outras sensações são causadas pelo choque: a dor e o prazer. Tais sensações devem nortear nossa conduta. Aqui chegamos à ética epicurista.
Para sermos felizes, devemos sempre buscar o prazer e fugir da dor causada pela perturbação de nosso corpo por átomos que se chocam a ele. O natural é a queda isolada do átomo, sem choques, num curso infinito. Os seres humanos devem buscar o encontro de um estado de menor perturbação possível e usufruir do prazer desse estado. Como se voltassem à queda infinita e isolada do átomo.
Esse estado seria encontrado quando sentíssemos um prazer verdadeiro, o qual decorreria de nossa harmonização com a natureza. Se fóssemos além dos limites impostos pela natureza, poderíamos experimentar uma ilusão de prazer, que logo se transformaria em perturbação e dor. Portanto, a vida ética, que propicia a felicidade, deve transcorrer em consonância com as regras impostas pela natureza.
Como saber se o corpo está respeitando os ditames naturais? Basta seguir a sensação de prazer verdadeiro, que não se converte em seu antípoda. Que prazer é esse? Epicuro afirmaria: devemos buscar os prazeres naturais e necessários, quais sejam, aqueles que derivam de sensações causadas pela natureza e são necessários e suficientes para a manutenção de nossa vida. Um exemplo é o prazer alimentar: devemos comer moderadamente, usufruindo desse prazer, que perdura e não se transforma em dor.
Caso exageremos nos prazeres naturais, eles converter-se-iam em prazeres desnecessários. Ainda que sintamos uma ilusão de prazer num primeiro momento, logo, dado o exagero, saímos de nosso curso natural e entramos novamente em choque com os átomos, sentindo coisas desagradáveis. O exemplo da alimentação ainda é válido. Se comemos sem moderação, ou se comemos alimentos por demais variados, corremos o risco de experimentar sensações desagradáveis, pois vamos nos chocar com muitos átomos, fora de nosso curso natural.
Há ainda um perigo maior: os prazeres não naturais (convencionais) e desnecessários. São prazeres derivados de coisas criadas pelos homens, que nos afastam da natureza e não são necessárias para a nossa vida feliz. Derivam de consensos e opiniões, como o prazer causado pelo luxo, pela glória, pelo poder.
Aqui destacamos esse último prazer: o poder, que se liga à política. Epicuro coloca a política no rol dos prazeres não naturais e desnecessários, condenando-a como uma mazela que desvia o ser humano de sua harmonização com a natureza.
A ética estabelece, assim, que devemos buscar satisfazer nossos prazeres, mas apenas aqueles naturais e necessários, evitando a sedução causada pelos outros. Devemos, pois, exercer uma razão sempre vigilante, capaz de constantemente medir e limitar os prazeres que buscamos. Essa razão deriva de nossa capacidade de nos colocarmos em nosso curso natural, que é a prudência.
É importante destacar que o curso natural do ser humano é restabelecer sua queda isolada, sem choques ou perturbações. Assim, viver eticamente é viver conforme a natureza humana, evitando ser perturbado por outros e não perturbando o próximo. Chegamos, aqui, a um direito epicurista.
Se os seres humanos são naturalmente dispersos, não se relacionam. Se não há relacionamentos naturais entre as pessoas, fica difícil imaginar que exista um direito natural. Ou somente se pode imaginar um direito natural que negue a relação, determinando que não se pode prejudicar nem ser prejudicado.
O direito epicurista, dessa forma, consagra um paradigma essencial ao direito: o paradigma da segurança. O fim do direito é a segurança das pessoas, garantindo que não serão vítimas de perturbações e poderão seguir em seu curso de isolamento e prazer.
De certa maneira, esse paradigma estará presente no modelo de Hobbes e no nosso ordenamento jurídico do presente. Há a possibilidade de afirmarmos, inclusive, que o padrão de funcionamento do direito contemporâneo seja a busca da segurança de suas decisões, podendo recorrer à legalidade ou não para o conseguir. Os estados de exceção demonstrariam isso.
Epicuro cria uma filosofia, como visto, que rompe radicalmente com a perspectiva socrática hegemônica. Seu rompimento se dá nas três instâncias da filosofia: a física, por seu atomismo; a lógica, pelo seu empirismo; a ética, pelo seu naturismo apolítico. Tais rompimentos causam grande incômodo entre os filósofos durante séculos.
Referências:
BILLIER, Jean-Cassier e MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Barueri: Manole, 2005, cap. 2 (itens 5, 6) e cap. 3 – pp. 90-93.
Helenismo: estoicismo
Se a filosofia epicurista goza de uma reputação bastante negativa entre seus contemporâneos e sucedâneos, podemos considerar que a filosofia estoica, ao contrário, sempre foi associada a adjetivos bons. Embora possuam alguns pontos em comum, ambas terminam por se opor em aspectos cruciais.
Zenão de Cício (336-264 a.C.) é considerado o fundador do estoicismo. Por não possuir cidadania ateniense, estava proibido de adquirir imóveis na cidade. Assim, viu-se obrigado a criar sua escola em plena praça central, abaixo de um famoso pórtico. Em grego, pórtico é Stoá, daí os seguidores de Zenão ficarem conhecidos como os estoicos.
Seus mais ilustres discípulos, Cleanto (n. 331 a.C.) e Crisipo (280-210 a.C.), consolidam a doutrina. O estoicismo sobrevive por séculos, penetrando no Império Romano e possuindo seguidores como Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio.
Talvez a razão para tal longevidade esteja no espírito dessa filosofia que, embora busque romper com a tradição socrática, não o faz de modo tão radical quanto o epicurismo. Primeiramente, porque valoriza o discurso e a razão (lógos), seguindo a perspectiva platônica e aristotélica. Depois, seu materialismo não é atomístico e encontra, na natureza, uma razão divina e providencial que dá um sentido a todas as coisas. Por fim, sua ética leva a uma postura solidária, capaz de ser absorvida, até mesmo, pela cultura cristã.
Relativamente à lógica, podemos afirmar que os estoicos eram filósofos, no sentido estrito da palavra: amam a sabedoria e buscam conhecer a razão de todas as coisas. Essa postura, como veremos, deriva de sua crença de que a razão está presente na matéria, sendo capaz de dar um sentido à natureza e à ética. Descobrir a razão presente nas coisas significa identificar sua ordem natural e descobrir os limites da conduta humana.
Como adotam uma perspectiva materialista, não admitindo a existência de forças ou princípios universais, fora da natureza, acreditam que o verdadeiro conhecimento é atingido por meio da experiência, do contato do ser vivo com o mundo, que possui a essência de si.
As pessoas nasceriam como um livro em branco, sem qualquer conhecimento inato. Conforme experimentam sensações empíricas, começam a conhecer as coisas, cujas imagens ficam gravadas na alma. O pensamento seria a articulação dessas imagens.
Esse conhecimento empírico, portanto, seria verdadeiro, pois nada transcenderia a natureza, nem deus, que seria imanente. Assim, quando o ser humano sente as coisas naturais, entra em contato direto com deus, que se expressa racionalmente. Compreender a natureza, portanto, é compreender deus e identificar o sentido da vida.
Haveria dois princípios que organizam o mundo: um passivo (a matéria) e um ativo (a razão). A matéria que compõe os objetos é inerte, não se move nem se transforma. Quando é perpassada pelo princípio ativo, ganha movimento e passa a se transformar, pois é organizada de modo racional para cumprir um destino.
Todos os corpos existentes possuiriam, em maior ou menor grau, um princípio ativo, uma razão que norteia seu porvir. Esse princípio é como um fluido que penetra nos corpos, conectando tudo o que existe. É chamado de simpatia e é responsável por dirigir as coisas a um destino próprio.
Como todos os seres estão interligados pela simpatia, nada existe autonomamente. Isso significa que a felicidade plena só ocorrerá se houver a felicidade em cada um dos seres. Enquanto uma única coisa se desviar do seu destino, todas as coisas sentirão esse abalo.
Essa imagem de uma simpatia universal entre todos os seres está presente em algumas filosofias orientais e é bastante forte no imaginário contemporâneo. Um exemplo recente foi o filme Avatar, de qualidade artística duvidosa, cujos seres da lua Pandora encontram-se interligados por uma força universal, vivendo em plena harmonia com a natureza.
Da física chegamos à ética estoica. Os seres humanos devem buscar a felicidade e esta deriva de uma vida que realize plenamente seu destino, levando à harmonia com o mundo. Fazendo uma comparação, cada pessoa estaria num braço de um imenso rio, tendo um curso a seguir, cuja correnteza levaria exatamente a esse curso. Caberia às pessoas identificarem o sentido da correnteza e, então, deixarem-se levar, felizes.
A ação humana torna-se ética, pois, no exato instante em que coincide com o destino do agente. Esse destino, conforme exposto, é dado pelo princípio ativo que deu vida à pessoa. Cada ser humano recebeu sua dose de simpatia porque tem um destino a cumprir; cabe a cada um descobrir a razão de sua vida e seguir esse caminho, que também leva à felicidade.
Mas há um inimigo, velho conhecido dos socráticos: o páthos (a paixão). Na filosofia estoica, paixão é qualquer movimento do ser humano em um sentido contrário ao de seu destino natural (que é sua razão). Viver conforme o destino é verdadeiramente prazeroso; afastar-se de seu destino traz um prazer ilusório, que logo se desfaz. A paixão é esse afastamento e deve ser completamente eliminada, pois é desnecessária para a vida feliz. Não basta, como prega Aristóteles, moderar a paixão.
O sábio, que é ético, vive apenas conforme a razão, ou seja, o sentido natural de sua vida. Não possui paixões, nem orgulho ou ambições, mas é sincero, piedoso, nobre e grande.
A escolha ética é uma escolha livre, não obstante cada ser humano nasça com um destino a cumprir. Pode-se escolher entre seguir um curso que corresponda ao destino ou não. O sábio, que identifica a razão de sua vida, sempre escolhe seguir o mesmo caminho de seu destino.
Ao mergulhar dentro de si para descobrir a razão de sua vida, o sábio termina por encontrar a simpatia e por descobrir-se membro de uma força que interpenetra todas as pessoas. Descobre que sua felicidade depende da felicidade do mundo e nunca mais se torna indiferente à dor ou ao sofrimento do outro, percebendo-os como sendo próprios. A ação estoica exige o altruísmo para ser plena.
O sábio descobre que é composto por matéria e pela força que está unindo todas as pessoas. E descobre que todas as pessoas possuem esses mesmos dois elementos. Isso leva à descoberta de que não há diferença entre o “eu” e o “outro”, sendo ambos iguais.
Tal constatação leva a um ideal de universalidade do ser humano, abolindo a tradicional oposição entre o grego e o bárbaro. Para o estoico, qualquer pessoa, em qualquer local do mundo é igual às demais. Nem mesmo o escravo e o homem livre são diferentes.
Esse princípio da igualdade universal do gênero humano contraria as perspectivas socráticas, segundo as quais haveria diferenças essenciais entre o grego e o bárbaro, sendo este inferior ao primeiro.
Dado que o universo estoico é pleno, harmonioso, ocupado pela simpatia, podemos pensar que naturalmente os homens se relacionem, havendo um direito natural que regularia essas relações.
A perspectiva estoica, sob o ponto de vista do direito, leva à crença de que os direitos positivos das cidades devem corresponder ao direito natural, que traz as regras mais gerais de conduta capazes de levar as pessoas a seus destinos naturais. A aplicação das leis sempre deve ter em mente que elas talvez ainda não tenham atingido o grau de universalidade desejável, procurando sempre adequá-las ao direito natural. As novas leis devem ser feitas atentando-se para tais regras gerais, procurando copiá-las.
Isso levaria à formação de direitos positivos cada vez mais parecidos entre si, pois cada vez mais próximos às regras naturais. Num dado momento, todas as cidades adotariam as mesmas leis, permitindo a toda a humanidade guiar-se pelo mesmo direito positivo, que corresponderia ao direito natural.
É importante destacar que, comparando-se o direito estoico ao direito aristotélico, notamos que Aristóteles termina por constatar que a generalidade da lei impede sua aplicação, com justiça, aos casos concretos, exigindo que o aplicador recorra à equidade, que permite dar a cada um efetivamente o seu.
Já do ponto de vista estoico, a lei não é suficientemente geral quanto o direito natural, que é universal. O movimento do aplicador da lei deve ser invertido, procurando sempre afastar-se do concreto no sentido do geral, encontrando, para cada caso, não a medida particular de distribuição, mas seus aspectos universais (direitos naturais) que revelam o destino de cada ser humano e, em última instância, da humanidade como um todo.
O direito estoico termina muito próximo a preceitos morais como “amar o outro” e “viver uma vida de acordo com a razão”, às vezes exageradamente vagos para resolver problemas cotidianos da cidade.
Vimos que o estoicismo é uma filosofia muito bela em inúmeros aspectos. Prega uma existência humana em plena harmonia com a natureza e uma conduta ética que admite a impossibilidade de concretização plena da felicidade sem que todos os seres sejam também felizes, pregando o altruísmo. Porém, como as outras filosofias do helenismo, afasta-se da política e esbarra no grande problema suscitado por Aristóteles: a desigualdade real entre as pessoas.
Referências:
BILLIER, Jean-Cassier e MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Barueri: Manole, 2005, pp. 94-97.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia – vol. 2, As Escolas Helenísticas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 112-168.