Irretroatividade das leis
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11/10/2011A Filosofia Moderna – transição e marcos
O pensamento de São Tomás de Aquino permite uma revalorização máxima, dentro dos limites da perspectiva cristã, da capacidade racional humana. O ser humano é visto como capaz de decidir e realizar coisas boas, desde que agindo sob inspiração de sua razão. Seus atos racionais confirmam a fé, levando a Deus.
Uma valorização ainda maior do ser humano, todavia, estava por se iniciar com a inauguração do pensamento moderno. Se podemos representar o pensamento antigo sob o prisma de três esferas (universo, natureza e cidade – cosmologia) e o pensamento cristão acrescentando uma quarta esfera (Deus – teologia), a filosofia moderna subverterá essa perspectiva, colocando o ser humano individual em seu ponto de partida. A esse fenômeno chamamos “antropologização” da filosofia.
Enquanto os antigos, por exemplo, partem das leis universais para explicar a natureza e, então, delimitar o espaço do ser humano em suas cidades, e os cristãos partem, por seu lado, de Deus, os pensadores modernos adotarão o indivíduo como cerne de suas reflexões. Assim, por exemplo, o direito natural antigo derivará da natureza (física), o direito natural cristão derivará do direito divino e o direito natural moderno derivará de outra natureza, a individual. Para os antigos, o homem é um ser natural, dotado de um espaço próprio na natureza; para os cristão, o homem é uma criatura de Deus, devendo descobrir suas leis e viver conforme as mesmas; já para os modernos, porém, o homem é um ser dotado de vontade, que deve construir sua sociedade para sair da natureza, respeitando os direitos dos demais, que derivam da mera essência humana de cada um.
Três movimentos somam-se na transformação do pensamento, permitindo um rompimento com a teologia cristã e a instauração de uma filosofia antropológica: Renascimento, Absolutismo e Iluminismo.
A palavra renascimento indica o ressurgimento de algo que já existira. No caso dos movimentos que recebem esse nome, renasce a cultura clássica (grega e romana), por algumas razões considerada superior à cultura medieval, associada às trevas.
Durante a história, podemos constatar a existência de vários “renascimentos”:
- No século VIII, Carlos Magno busca restaurar o Império Romano, retomando valores da cultura clássica, implementando uma reforma educacional que leva à proliferação das escolas dos mosteiros e ao ressurgimento da arte romana;
- Alguns movimentos no século XII recebem o nome de Renascimento: ressurgimento das cidades, do comércio e da cultura clássica. Relativamente a este último aspecto, destacamos as universidades, formadas no período, que retomam estudos científicos da antiguidade, entre os quais o estudo do direito romano;
- O movimento filosófico cristão do século XIII pode ser visto como outro Renascimento, propiciando o ressurgimento de Aristóteles e sua filosofia, especialmente graças a São Tomás;
- O Pré-Renascimento do século XIV, marcado pelas obras de Dante Alighieri, Boccaccio e Petrarca, retomando modelos artísticos latinos e concebendo a Antiguidade como uma civilização autônoma.
Nos séculos XV e XVI o resgate da cultura antiga atinge seu ápice, considerando-se seus agentes não apenas seus reprodutores, mas verdadeiros continuadores de seus ideais. Esse é o último grande Renascimento e talvez aquele mais destacado pela história. É o momento de consagração de três ícones da arte mundial, Leonardo da Vinci, Rafael e Michelângelo e de expansão do movimento, inicialmente restrito à Itália, pela Europa.
Esse movimento leva a e reforça outro, chamado humanismo. Consiste na exaltação do ser humano enquanto indivíduo, desconectado de laços naturais ou transcendentais. O indivíduo não é visto como apenas mais um ser da natureza ou como mais uma das criaturas de Deus; agora, torna-se o único ser natural livre, capaz de alterar os condicionamentos da natureza, ou a mais perfeita criação divina, feita a sua imagem e semelhança.
Há uma alteração fundamental na postura do ser humano em relação ao mundo e à natureza. Se o homem antigo busca compreender as leis naturais para encontrar seu espaço, entrando em profunda harmonia com elas, e o cristão espera encontrá-lo a partir da vontade divina, o indivíduo moderno, livre, espera construir esse espaço, modificando e aperfeiçoando a natureza. A grande ambição humana da modernidade é libertar-se dos determinismos naturais e não simplesmente construir um espaço que prolongue a natureza.
Podemos dizer, assim, que o homem antigo e o cristão são meros espectadores contemplativos do mundo físico e universal, buscam a compreensão de suas leis para construir as leis humanas em consonância com elas. Já o homem moderno, porém, deseja decifrar as leis físicas e universais para controlar essas esferas, para emancipar-se e organizar sua sociedade, a civilização.
Essa busca de controle pode ser detectada na disseminação do relógio, que modifica a visão das pessoas a respeito do tempo. O tempo da modernidade deixa de relacionar-se a divindades e a fenômenos naturais, como a alternância dia-noite, estações do ano, fases da lua. O tempo moderno esvazia-se, transformando-se na mera sucessão abstrata dos segundos, materializada nos ponteiros do relógio. Em si, deixa de ter qualquer significado. Porém, por outro lado, esse tempo desconectado pode ser controlado e manipulado pelos seres humanos, conforme sua vontade.
Também podemos vislumbrar essa postura ativa noutros aspectos, como a descoberta da perspectiva, permitindo aos arquitetos e aos artistas representarem o infinito, propiciando um controle maior sobre o espaço, e a disseminação das fórmulas matemáticas em ramos científicos como a astronomia e a física teórica, propiciando uma previsibilidade total de fenômenos.
Do ponto de vista humano, o humanismo leva à constatação de que a vontade do indivíduo isolado é a fonte de todo poder social. Assim, todas as pessoas possuem poder, podendo aumentá-lo ou perdê-lo conforme seus méritos ou a falta desses. Abre-se espaço para uma fundamentação moderna da política.
Nicolau Maquiavel (1469-1527) costuma ser apontado como o responsável por trazer, pela primeira vez, essa fundamentação. Ao escrever seu célebre livro O Príncipe (ou “O Governante”), registra logo no início que toda sociedade possui homens que querem mandar e homens que não querem obedecer. Ora, se compararmos com Aristóteles, por exemplo, o fundamento do poder modificou-se completamente: para o filósofo grego, os homens nascem para mandar ou para obedecer. Note-se: o fundamento do poder está num fato natural, o mero nascimento; portanto, o poder deriva de uma causa natural. São Tomás escreve que Deus criou o ser humano para viver em sociedade e respeitar as autoridades. Aqui, o fundamento da política deriva de Deus.
Ao afirmar que os homens querem mandar e não querem obedecer, Maquiavel funda o poder em atos voluntários humanos. A política passa a ser apenas a aquisição do poder e sua manutenção. O bom político não é aquele que realiza valores superiores como a Justiça ou o Bem Comum, mas aquele que mantém o poder em suas mãos por longo tempo. Para conquistar o poder e mantê-lo, todos os meios podem ser úteis e são justificáveis (os fins justificam os meios).
Maquiavel desmascara a política e deixa claro seu objeto exclusivo: o poder. Um bom governante deve ter em mente que se deparará com homens que não querem obedecer. Conforme seus méritos, deverá convencê-los a obedecer. Esse convencimento pode dar-se pela prática de atos bons ou maus, conforme as circunstâncias. Se for necessário realizar obras públicas para convencer as pessoas à obediência, que sejam realizadas; se for necessário praticar atos de violência, que sejam praticados.
Num sentido quase oposto, podemos citar Thomas Morus (1478-1535), que escreve seu famoso livro Utopia, descrevendo uma ilha imaginária na qual predomina a igualdade entre os homens, a política é racional e não existe a propriedade privada. Note-se que u-topia, do grego, significa “sem-lugar”, ou seja, a ilha não possui um lugar no mundo real, apenas no imaginário. A obra de Morus transforma-se numa crítica ao contexto político da Inglaterra e do restante da Europa e a palavra dissemina-se como sinônimo de um novo mundo e de novas esperanças de construção de uma sociedade melhor. O ser humano, individual, pode aperfeiçoar sua sociedade, desde que assim o deseje e dê um lugar concreto para a ilha imaginária.
Outro aspecto importante na transição para a modernidade é o rompimento da unidade cristã. Durante séculos a igreja católica monopolizou o imaginário cristão, determinando sua leitura da bíblia e seus dogmas a respeito de Deus. No contexto dos séculos XV e XVI surgem algumas contestações que abalam esse monopólio e culminam no surgimento de seitas cristãs não católicas.
Um movimento que poderia parecer desconectado de implicações mais profundas termina por trazer sérios abalos à ordem católica: o heliocentrismo, ou a defesa de que o sol é o centro do sistema planetário. Sob o ponto de vista católico, a Terra fora criada por Deus para ocupar o centro do universo, estando nela Suas criaturas mais importantes. Ao redor da Terra girariam os astros do céu, presos em esferas que se movimentariam como uma grande máquina.
Copérnico (1473-1543), Johannes Kepler (1571-1630) e Galileu Galilei (1564-1642) desenvolvem teorias que fundamentam uma nova visão da disposição do sol e dos planetas, defendendo que a estrela solar está no centro do sistema, e os planetas orbitam em torno dela. Essa visão deslegitima a tese de que a Terra é a criação mais importante de Deus, pois trata-se apenas do terceiro planeta do sistema solar, de tamanho médio a pequeno.
As repercussões dessas teses foram as mais diversas. O grande fundamento para as desigualdades sociais era religioso: Deus criara ordens na sociedade para serem ocupadas por diferentes tipos de homens: trabalhadores (servos), guerreiros (nobres) e religiosos (clérigos). O nascimento de uma pessoa em uma dessas ordens era escolha do Criador, determinando todos os aspectos da vida do indivíduo. Assim, as desigualdades e as injustiças terrenas derivam da vontade divina, não podendo ser questionadas pelos homens. Depois da vida terrena, Deus, que observava atentamente sua grande criação, recompensaria aqueles que aceitaram e cumpriram seus papéis.
Por outro lado, a partir do momento em que a Terra é deslocada para uma zona periférica e insignificante do universo, não é possível defender a tese de que tenha sido uma criação especial de Deus. Trata-se apenas de mais um planeta, em nada diferente dos demais. Talvez as injustiças que ocorram em seu interior não derivem da vontade divina, que sequer prestaria sua atenção a planeta tão reles. Eclodem revoltas sociais. A Igreja passa a perseguir os adeptos do heliocentrismo.
Tais ideias resultam no pensamento de Giordano Bruno (1548-1600), que defende a tese de que o universo é infinito e repleto de astros como o Sol e os planetas. Além disso, sua tese mais polêmica para a época foi a da imanência de Deus, ou seja, o ser divino não existe fora do universo, mas é a soma de tudo o que existe. Em virtude dessas ideias, foi condenado pela Igreja Católica e morreu queimado na fogueira da Inquisição.
Em termos religiosos, devemos destacar a Reforma, assim denominada uma série de revoltas religiosas que terminam com a fundação de novas igrejas protestantes. Na Inglaterra, o resultado dessas insatisfações reflete em Henrique VIII, que cria a Igreja Anglicana em 1534. Na Alemanha, podemos citar os protestos de Lutero (1517), que funda sua seita, e de Thomas Münzer (1489-1525), resultando em alguns movimentos sociais. Na Suíça, Calvino (1509-1564) estabelece os dogmas de sua fé, criando também sua igreja.
Todos esses protestos contribuem para uma crise inigualável na Igreja Católica. Como reação, seus dogmas são reforçados pelo Concílio de Trento (1545). Recorrendo à força, os católicos tentam recuperar o poderio perdido criando o Tribunal do Santo Ofício (a Inquisição) e declarando o Índice dos livros proibidos.
Não obstante a reação católica, o mundo religioso da Idade Média está definitivamente desmoronado. Associando a essa ruína o movimento humanista, podemos compreender algumas condições culturais que propiciaram a consolidação da modernidade.
Ao mesmo tempo, os estados nacionais estão se unificando na Europa. O poder dos reis aumenta gradativamente, até chegarmos ao Absolutismo. Num primeiro momento, graças a Jean Bodin, no século XVI, volta-se a justificar o poder político na vontade de Deus.
O pensador francês defendeu a tese de que o poder dos reis deriva diretamente de Deus, sendo seu reflexo no mundo terreno. Ora, se o poder real deriva da vontade divina, torna-se superior ao poder de qualquer ser humano, derivado apenas da vontade individual. Os atos do rei legitimam-se pela origem divina, não se submetendo a juízos de valor feitos pelos homens.
Convém destacar que essa fundamentação divina do poder real não significou um fortalecimento da Igreja Católica. O próprio Jean Bodin foi acusado de ser protestante e perseguido na França. Muitos reis julgaram que seu poder divino fosse idêntico ou superior ao do papa, opondo-se a sua vontade e entrando em conflitos com ele.
Nos séculos XVII e XVIII forma-se um movimento que ainda mais contribui para o delineamento da modernidade: o Iluminismo. Podemos catalogar sob essa conceituação pensadores muito diversos, unidos pela preocupação de recolocar a razão no centro do pensamento ocidental.
Afirmando que as crenças religiosas (a fé), as tradições costumeiras e os preconceitos levavam a humanidade às trevas e à escuridão da ignorância, propõem-se a iluminar a sabedoria da humanidade com as luzes da razão. Assim, consideram que a razão é universal, imutável e única fonte do verdadeiro conhecimento.
Consolidando essa perspectiva, Isaac Newton (1642-1727) desenvolve teorias que explicam o movimento de corpos em qualquer lugar do universo. Ora, tais teorias são racionais, demonstrando que a razão é inerente à matéria, estando presente em todos os corpos. Sua teoria da gravitação universal explica a atração dos corpos e as três leis do movimento explicam o comportamento desses. São essas leis a lei da inércia, da mudança do movimento e da ação e reação.
Na vertente puramente filosófica, os iluministas franceses (Les Philosophes), como Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784) e Montesquieu (1689-1755) destacam-se, criando condições intelectuais que levarão à Revolução Francesa.
Uma postura típica do iluminismo é a de conceber o universo como uma grande máquina, repleta de mecanismos e engrenagens que explicariam todas as coisas. O homem poderia identificar, racionalmente, o modo pelo qual essa máquina funciona e passar a operá-la conforme sua vontade. Assim, o ser humano seria capaz de modificar seu destino e imprimir a ele o curso de sua vontade. Em termos sociais, isso significaria a criação de leis racionais que governassem os estados.
Devemos considerar, por fim, que esses movimentos conduzem a filosofia a novos paradigmas: seu ponto de partida é o indivíduo, a fé é desvalorizada e a razão volta a reinar soberana. A vontade individual a nada se submete e tudo pode transformar.
A obra mais famosa de Montesquieu (1689-1755) é Do Espírito das Leis (1748). Seu objeto de estudo é, como o nome indica, a lei e sua importância para estabelecer um governo racional sobre a sociedade. Em outras palavras, conforme o filósofo, todo o universo é regido por regras racionais; a forma de submeter a sociedade à razão seria submetê-la e submeter o Estado às leis.
Nesse sentido, podemos compreender a noção de liberdade do autor. Se as leis consagram a razão, o homem livre, que deve ser racional, será livre se obedecer às leis. Ainda no livro Do Espírito das Leis, o filósofo consagra um dos princípios fundamentais do Estado Moderno: a Separação de Poderes. Seu pressuposto é o de que, se uma mesma pessoa criar leis, executá-las e julgar, essa pessoa se tornaria um tirano. Para evitar isso, propõe que as três funções do Estado (Legislativa, Executiva e Judiciária) estejam separadas; para garantir o equilíbrio estatal, sugere que cada Poder fiscalize o outro.
ABRÃO, Bernadette Siqueira. História da Filosofia – Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
BILLIER, Jean-Cassier e MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Barueri: Manole, 2005.
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2009.
Do capitalismo à filosofia política moderna
A filosofia moderna brota na transição de uma sociedade marcada pelo modo de produção feudal para uma sociedade marcada pelo surgimento do capitalismo. Nessa transição surgem os aspectos ideológicos básicos da modernidade.
O modo de produção feudal é estático, rural e religioso. É estático porque baseado em divisões estamentais entre a população, marcado pelos costumes e pelo peso da tradição, sem transformações culturais significativas e sem mobilidade social. É rural pois estruturado em feudos, ou grandes fazendas, dentro das quais se passa a maior parte da vida, sendo as cidades pequenas e pouco importantes. É religioso por ser unificado ideologicamente pelo cristianismo, que fundamenta as divisões sociais e justifica o papel de cada ser humano, bem como as desigualdades sociais e as injustiças, atribuindo-as à vontade de Deus.
Aos poucos, o mundo (europeu) sofre transformações que fazem dele mais dinâmico, urbano e comercial. Desde o século XIV ocorrem fenômenos que permitem o renascimento do comércio e das cidades, modificando abruptamente as estruturas tradicionais da sociedade feudal. O capitalismo instaura sua ordem de classes sociais, marcada pelas transformações e pela mobilidade entre classes, ao menos em um momento inicial.
No feudalismo, as relações produtivas são marcadas pela servidão. O trabalhador e seu senhor estão presos ao feudo, assim como seus antepassados estiveram, geração após geração. Cada servo possui um pedaço de terra, que foi herdado e será transmitido a seus filhos. Nesse local, constroem suas casas, cultivam gêneros alimentícios e criam animais. Todas as coisas de que necessitam para a sobrevivência estão garantidos pela relação de servidão, bastando que trabalhem, em um ritmo determinado pelas variações naturais, para obterem-nas. Devem, esporadicamente, trabalhar nas terras de seus senhores e, rotineiramente, pagar tributos a eles.
Os senhores vivem focados na defesa dos feudos, estabelecendo exércitos para a proteção de sua família e de seus servos. As alianças entre senhores determinam as guerras e a defesa contra os bárbaros é uma constante preocupação. Os tributos cobrados sustentam tais nobres e permitem a manutenção de seus soldados.
Essa vida é abalada pelo surgimento do capitalismo. Aos poucos, os feudos deixam de produzir todas as coisas de que seus trabalhadores necessitam para sobreviver e passam a produzir gêneros específicos, que são vendidos em feiras nas cidades que florescem. O modo de vida repetido por gerações e gerações precisa ser modificado. As lições dos antepassados já não servem para garantir a existência na nova sociedade que se forma.
Aos poucos, as terras são cercadas e os camponeses expulsos dos locais em que obtinham seu sustento. Perdem suas casas, seu plantio e sua criação. Encontrando-se sem os meios para produzirem seu sustento, precisam ir para o local em que a nova riqueza está concentrada: as cidades. Nessas, são obrigados a trabalhar por valores insignificantes, para poderem obter algum dinheiro.
O novo mundo capitalista, assim, obriga as pessoas a praticarem atos de troca mercantil (compra e venda) para sobreviver. É preciso vender qualquer coisa, como a força de trabalho, em troca da moeda com a qual se pode comprar alimento, vestuário e habitação. No capitalismo, a mera sobrevivência consome todas as forças dos trabalhadores em geral.
Mas, em termos ideológicos, a perspectiva pode ser apresentada de modo otimista: enquanto no feudalismo todas as pessoas estão presas a um destino marcado pelo nascimento, no capitalismo esse destino pode ser modificado. O ser humano, sozinho, individualmente, pode conquistar seu sucesso. Para tanto, basta fazer um cálculo simples: deve-se gastar menos do que se recebe com a venda do tempo de trabalho ou de outras mercadorias. Se isso for feito, qualquer pessoa irá enriquecer. Sua vontade é soberana para determinar seu papel na sociedade.
A sociedade capitalista nascente, assim, cria as condições sociais para um ambiente intelectual de crença no indivíduo e no poderio de sua vontade. A nova ordem está por ser construída, podendo ser moldada livremente pelo indivíduo que decide sobre seu destino.
Num primeiro momento, essa nova ordem exige um estado forte e centralizado. Como as relações mercantis são fundamentais, pois todos dependem delas para sobreviver, uma vez que os feudos deixaram de ser autossuficientes e as cidades não permitem a autonomia produtiva das pessoas, há a necessidade de unificação territorial por esse estado e da delimitação de padrões, como pesos, medidas, moedas e tributos, os quais criem um ambiente de certeza e segurança. Nesse ambiente, as trocas podem multiplicar-se.
O resultado dessas condições é o Absolutismo e a atribuição de poderes soberanos à figura do monarca. Mas, num segundo momento, esses poderes, o arbítrio dos reis, o favorecimento aos nobres e aos clérigos, a tributação excessiva aos comerciantes e a insegurança jurídica pedem um novo estado, pautado por valores racionais e de respeito aos direitos naturais. Eclodem revoluções na Inglaterra, na França e no resto da Europa, resultando no constitucionalismo e no estado de direito.
Sob o ponto de vista da teoria política, a economia capitalista leva ao contratualismo social. O individualismo das trocas capitalistas permite a estruturação de teorias jusnaturalistas que fundam os direitos na existência humana. O novo direito natural, assim, adota o indivíduo como ponto de partida e resulta numa ordem social e política que deve respeitá-lo.
Os direitos naturais são racionalmente descobertos no indivíduo. Por exemplo, os filósofos e juristas perguntam-se: o que faz de nossa espécie um ser humano? Essas características essenciais são convertidas em direitos naturais: a vida, o pensamento, a liberdade…
Esse fenômeno de derivação dos direitos do ser humano isoladamente considerado, por meio da razão, é chamado antropologização do direito. Os direitos naturais, que derivavam da ordem natural ou da vontade divina, derivam apenas da condição humana. São descobertos pela razão (e não pela fé ou pelos costumes) e, por derivarem de uma essência racional do ser humano, são eternos e imutáveis.
Se a fonte do poder é a vontade do indivíduo, a sociedade passa a ser vista como constituída por uma associação voluntária: trata-se do contrato social. A sociedade, construída pelos seres humanos, deve respeitar limites apriorísticos trazidos pelos direitos naturais, que a antecedem. Ela surge, conforme alguns teóricos da modernidade, justamente para propiciar as condições de respeito aos direitos naturais, evitando que a vontade dos seres humanos se choque e cause um desrespeito a tais direitos.
Para garantir esse respeito, as vontades individuais se unem também para estruturar uma vontade maior, que cria o Estado. Destacamos, então, que os direitos naturais, que não derivam do Estado, não podem ser por ele desrespeitados. Ao contrário, devem ser reafirmados por meio das leis positivas. O ideal do movimento jusnaturalista moderno é a positivação do direito natural, criando as bases para os movimentos codificadores.
O pensamento político da modernidade deriva da perspectiva individualista, cuja origem remota está na formação do capitalismo. Três esferas devem ser levadas em consideração pelos filósofos:
- o indivíduo e seus direitos naturais;
- a sociedade formada pela sua associação a outros indivíduos;
- o estado, cujo poder deriva da fusão das vontades individuais.
As relações entre as esferas deverão ser enfrentadas pelas teorias políticas modernas. O ideal seria a existência de uma sociedade que criasse condições para os seres humanos concretizarem seus direitos naturais, governada por um Estado que se limitasse a atuar o mínimo possível, apenas nas poucas situações em que um indivíduo exerce de modo equivocado sua vontade e prejudica os direitos naturais de outra pessoa. Todavia, os filósofos políticos deparar-se-ão com sociedades que não permitem a efetivação dos direitos naturais e/ou com Estados que não reconhecem, em suas leis, a proteção a eles.
Referências:
BILLIER, Jean-Cassier e MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Barueri: Manole, 2005.
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2009. (cap. 7)