Neoliberalismo e crise do Direito Social
25/08/2023Desafios para o Direito no Século XXI
01/09/20231. Neoliberalismo e Estado
Ao longo do século XX, o neoliberalismo se consolidou como uma ideologia econômica poderosa, defendendo a mínima intervenção estatal e favorecendo um mercado amplamente desregulado. Essa tendência se manifestou globalmente, influenciando não apenas as economias, mas também as paisagens políticas e sociais dos países. A crescente globalização, impulsionada em grande parte pela liberalização dos mercados, deu espaço para que grandes corporações transnacionais, como Google, Apple e Amazon, exercessem uma influência muitas vezes comparável ou até superior à dos próprios Estados-nação. Esse cenário desafiou a centralidade dos Estados, especialmente quando se tratava de governança global, incluindo domínios como a internet.
No entanto, essa influência do neoliberalismo não foi uniforme em todas as nações. Por exemplo, na China, o Estado adotou medidas de mercado livre, mas manteve um controle firme sobre sua economia e política. Em contrapartida, países como o Brasil, enfrentaram desafios agravados pela desigualdade econômica e dependência de exportações de commodities, levando a um poder estatal relativamente enfraquecido. Simultaneamente, acordos comerciais internacionais e organizações promoveram uma integração econômica global, enquanto a revolução digital conectava pessoas além das fronteiras, muitas vezes obscurecendo as linhas tradicionais dos Estados.
O século XXI também testemunhou um movimento maciço de migração global devido a fatores como economia, conflitos e mudanças climáticas. Isso, junto com a influência predominante da cultura ocidental, desafiou as noções convencionais de identidade nacional, levando a uma homogeneização cultural. No entanto, paralelamente, movimentos sociais têm se levantado, enfatizando identidades únicas, seja por etnia, gênero, orientação sexual ou religião, desafiando o conceito de uma nação unificada.
Em conclusão, a relação entre o Estado e o neoliberalismo no século XXI é complexa e dinâmica. Enquanto alguns Estados mantêm sua relevância, outros são constantemente desafiados por forças globalizantes, e ao mesmo tempo, a própria ideia de nação e identidade está sendo redefinida em face da globalização e da era digital.
2. Modelo piramidal
Baseado no pensamento de Hans Kelsen, o conceito da pirâmide jurídica é essencial para entender a estrutura e hierarquia do ordenamento jurídico, refletindo acontecimentos históricos e filosóficos que formaram a visão moderna do direito. Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, buscou isolar o estudo jurídico de influências externas, focando exclusivamente na norma. Ele visualizou o ordenamento jurídico como um sistema de normas hierarquizadas, validadas a partir de uma norma fundamental hipotética.
O cenário mundial no final do século XVIII, particularmente as revoluções Americana e Francesa, trouxe mudanças significativas na estrutura política e jurídica. Enquanto a independência americana resultou na Constituição de 1787, a revolução francesa desafiou o absolutismo monárquico, dando origem a um sistema de leis codificado, como o Código Napoleônico. Ambas as revoluções reforçaram que a autoridade e as leis provêm do povo, e não apenas do desejo de reis e rainhas.
Central para qualquer ordenamento jurídico, a Constituição é a norma suprema, estabelecendo a estrutura estatal, distribuindo competências e consolidando direitos fundamentais. Com base na soberania popular, ela assegura que as leis e normas abaixo dela estejam alinhadas com seus princípios. No Brasil, por exemplo, após a Constituição, temos leis ordinárias, complementares, delegadas e medidas provisórias como legislação primária e decretos, regulamentos, portarias e resoluções como normas mais administrativas. Esta estrutura hierárquica busca oferecer clareza e resolver potenciais conflitos de normas.
O modelo piramidal é uma resposta à arbitrariedade do “Antigo Regime”, e com a ascensão do Estado de Direito, surgiu a necessidade de ordem e previsibilidade. Esse ambiente jurídico, com funções claras e direitos codificados, como os códigos Civil ou Penal, visa proporcionar aos cidadãos a capacidade de antever as implicações legais de suas ações e acreditar na solidez do sistema. Códigos, como o Código Civil francês, surgiram no século XIX para encapsular o direito de forma organizada e lógica.
Em conclusão, o modelo piramidal não é apenas uma disposição gráfica das normas, mas simboliza a trajetória histórica e filosófica do direito, ressaltando a busca constante por justiça, previsibilidade e segurança jurídica em uma sociedade dinâmica.
3. Modelo da Rede
A análise proposta por François Ost e Michel van der Kerchove em “De la pyramide au réseau?” é crucial para compreender a metamorfose do paradigma jurídico, guiando-nos da concepção tradicionalmente hierarquizada do direito para uma abordagem mais interligada e flexível. Enquanto a estrutura piramidal proporciona uma visão hierarquizada e definida do direito, o conceito de rede reflete a complexidade e a interligação do cenário jurídico atual.
Desde a segunda metade do século XX, intensificando-se no século XXI, houve um aumento notório na complexidade da sociedade e da economia. Especificamente entre 1950 e 1990, houve uma expansão das responsabilidades do Poder Executivo no Brasil, ampliando significativamente sua influência nos serviços à população. Este cenário foi seguido pela emergência das Agências Reguladoras nas décadas de 1990, entidades com autonomia para estabelecer normas técnicas em diversos setores, resultado das ondas de privatizações.
No entanto, essa autonomia regulatória tem gerado tensões, pois algumas normas estipuladas pelas Agências Reguladoras entram em confronto com leis federais estabelecidas. Um exemplo emblemático é a colisão entre o Código de Defesa do Consumidor e certas normas estabelecidas pela ANS em relação aos planos de saúde.
Ao olhar para o modelo de rede, visualizamos uma vasta teia de focos normativos que se interconectam, frequentemente originando-se de subsistemas específicos, como o financeiro, de saúde suplementar e de telecomunicações. Ao contrário da clareza hierárquica da pirâmide, na rede, os conflitos entre normas, ou antinomias, são frequentes e sua resolução pode ser intrincada.
Esta complexidade é exacerbada pelas incertezas geradas pela Constituição Federal de 1988, que incorporou uma vastidão de direitos, muitos dos quais são articulados através de princípios abertos à interpretação. Além disso, mais de 100 emendas alteraram consideravelmente seu texto original. Neste contexto, a tradicional noção de validade jurídica, onde uma norma superior valida uma inferior, enfrenta desafios. Na ausência de uma hierarquia clara, muitas vezes é necessário recorrer à Constituição para arbitrar sobre validade. No entanto, com uma Constituição ampla e passível de diversas interpretações, este processo se torna ainda mais complexo.
Em resumo, a visão da rede captura os desafios intrínsecos ao Direito no mundo atual. Contrapondo-se à clareza da pirâmide, a rede desvenda um universo jurídico repleto de nuances e ambiguidades, onde a capacidade de interpretação é simultaneamente uma ferramenta essencial e um obstáculo a ser superado.
4. Competição entre as fontes do direito
A fonte do direito desempenha o papel crucial de indicar a origem das normas jurídicas, sendo a referência pela qual juristas e juízes embasam suas decisões. Historicamente, a visão predominante era a de um modelo piramidal, onde a Constituição e as leis se estabeleciam como as principais referências, formando uma clara hierarquia. A Constituição se colocava no ápice, seguida de leis, decretos e regulamentos, consolidando a ideia de “soberania da lei”.
No entanto, as rápidas transformações sociais e tecnológicas e o aumento das fontes normativas desafiaram essa estrutura piramidal. O sistema jurídico agora é frequentemente visualizado como uma “rede”, onde múltiplas fontes coexistem e, ocasionalmente, entram em competição. Além das leis tradicionais, um juiz pode se orientar por normas de agências reguladoras, regulamentos do Sistema Financeiro Nacional, diretrizes do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como as Súmulas Vinculantes. Esse panorama, em muitos casos, amplificou a atuação do STF, que tem se aventurado a ocupar espaços deixados por lacunas legislativas, moldando assim a estrutura normativa brasileira.
A partir dos anos 1990, uma mudança marcante no estilo legislativo emergiu. A redação das leis, incluindo a própria Constituição Federal, passou a incorporar mais conceitos abertos e princípios. Tal abordagem exige uma interpretação judicial mais robusta para decifrar e atribuir significado prático a esses termos, gerando um necessário “ativismo judicial”.
O direito, outrora majoritariamente estatal, agora reconhece e convive com fontes privadas de normatização. Gigantes da tecnologia como Facebook e Google estabelecem diretrizes que, em muitas situações, têm mais alcance e relevância do que as normas estatais. Da mesma forma, algumas empresas, como o Mercado Livre, introduziram mecanismos próprios para a resolução de conflitos, que são frequentemente escolhidos por sua eficácia e rapidez, em contraste com o sistema estatal.
Esta evolução culmina no que pode ser descrito como “Pluralismo Social”, onde o direito e seus mecanismos de resolução não estão confinados somente à esfera estatal, mas também se manifestam vigorosamente no domínio privado.
5. Resolução de conflitos
A concepção tradicional de resolução de conflitos no direito é representada pelo modelo piramidal, onde a Constituição Federal ocupa o topo, seguida por leis e demais normas inferiores. Esse modelo é fundamentado no princípio da inafastabilidade, inscrito no inciso XXXV da Constituição Federal, que garante que qualquer lesão ou ameaça a direito seja avaliada pelo Poder Judiciário, consolidando a segurança jurídica. Em consonância com isso, a hierarquia das normas estabelece a Constituição e as leis como superiores, sendo que a legitimidade das sentenças judiciais advém de sua conformidade com estas.
No contexto histórico, Montesquieu, no século XVIII, visualizava os juízes como seres “inanimados”, meros aplicadores da lei, evitando inserir suas convicções pessoais. A Revolução Francesa até tentou consolidar essa visão, proibindo brevemente a interpretação jurídica, mas isso foi rapidamente revogado.
Contudo, o cenário jurídico do século XXI mostra um distanciamento desse modelo. Agora, entidades como Agências Reguladoras, Banco Central e CADE assumem funções que lembram a judicial, como o sistema de reclamações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ou o canal do Banco Central que pode resultar em fiscalizações. Simultaneamente, o país vê uma proliferação de métodos alternativos de resolução de conflitos, como a arbitragem e a mediação.
O Brasil também presenciou uma crescente “judicialização” de conflitos, onde diversos assuntos, inclusive os políticos, são levados ao Judiciário. O Supremo Tribunal Federal (STF), por ser o guardião da Constituição, tem uma responsabilidade vital nesse cenário, interpretando a constitucionalidade das normas e influenciando o campo jurídico e político, como visto na mudança de interpretação sobre o “trânsito em julgado”.
Além disso, a evolução do direito trouxe consigo o fenômeno do “ativismo judicial”. Enquanto parte desse ativismo é técnico, motivado pela necessidade de esclarecer conceitos vagos nas leis, outra faceta é percebida como política, com juízes tomando decisões embasadas em ideais, mesmo que, ocasionalmente, isso vá contra o texto legislativo.
Contrariamente à visão de Montesquieu, os juízes contemporâneos são, em muitos casos, “animados”, desempenhando um papel interpretativo. Em conclusão, a função do Judiciário, outrora vista como majoritariamente executora, tornou-se progressivamente interpretativa, exigindo uma adaptabilidade essencial à justiça moderna.