Revoluções Políticas do Século XVIII e o Direito
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19/08/20231. Positivação dos Direitos Naturais
No século XIX, assistimos a um importante marco na história do Direito: a vitória dos revolucionários franceses deu impulso a um movimento amplo de criação de leis que traduziam os direitos naturais para o formato de normas escritas. Essa transformação foi um passo decisivo na evolução jurídica, que enfraqueceu a dicotomia entre direito positivo e direito natural e levou à formação do paradigma do direito positivo. Vamos detalhar esse processo e suas implicações.
Definição de Positivismo Jurídico
O positivismo jurídico é uma corrente de pensamento que sustenta que o Direito é um conjunto de normas estabelecidas pelo Estado e que sua validade não está necessariamente ligada a valores morais ou éticos. Essa perspectiva trata o Direito como uma ciência autônoma, cujo objeto de estudo é a norma jurídica.
Contexto Histórico
- A Revolução Francesa, ocorrida no final do século XVIII, foi um ponto de inflexão na história do direito. A derrubada da monarquia absolutista e o estabelecimento de uma república deram à França a oportunidade de repensar e reescrever suas leis.
- Os revolucionários franceses, influenciados pelas ideias iluministas, buscaram fundar uma nova ordem legal, baseada nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade.
Positivação dos Direitos Naturais: Exemplo e Significado
- Exemplo: A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 foi um exemplo claro de positivação dos direitos naturais. Ela estabeleceu, em formato de lei, princípios que eram entendidos como direitos fundamentais e inalienáveis do ser humano.
- Significado: A positivação dos direitos naturais significa que princípios considerados como fundamentais e inalienáveis foram transformados em leis concretas, escritas e formalizadas. Isso implica que esses direitos não são mais um conceito filosófico abstrato, mas fazem parte do sistema legal que pode ser aplicado e reforçado pelo poder judiciário.
Enfraquecimento da Dicotomia (Positivo x Natural)
- A positivação dos direitos naturais ajudou a dissipar a tradicional distinção entre direito natural e direito positivo. Antes da positivação, o direito natural (baseado em princípios éticos ou morais universais) era visto como algo separado e frequentemente em tensão com o direito positivo (as leis criadas pelos seres humanos).
- Com a positivação, esses direitos naturais tornaram-se parte integrante do sistema legal de um Estado, moldando as leis que regem a sociedade e, portanto, tornando a dicotomia menos relevante.
Consequências para a Prática Jurídica
- A positivação dos direitos naturais também teve implicações profundas para a prática jurídica. Advogados e juízes agora tinham uma base legal clara e escrita para seus argumentos e decisões, o que contribuiu para a certeza e a previsibilidade do direito.
Em resumo, a positivação dos direitos naturais no século XIX, impulsionada pelo contexto revolucionário francês, foi um movimento fundamental que ajudou a reformular a compreensão e a prática do Direito. Esse processo foi central na transição para o paradigma do direito positivo, no qual as leis escritas e formalizadas pelo Estado são centrais para a organização e a regulação das sociedades.
2. Movimento Codificador Francês
No contexto pós-revolucionário da França do século XIX, a crença no legalismo, uma das bases do Iluminismo, conduziu ao movimento codificador, que marcou a consolidação do direito positivo. Esse período foi caracterizado pela produção sistemática de grandes compilações legislativas que objetivavam unificar e racionalizar o direito. Vejamos os detalhes e implicações desse movimento.
Crença no Legalismo e Ideia Codificadora
- O legalismo é a doutrina segundo a qual todas as questões sociais, econômicas e políticas podem e devem ser decididas de acordo com a lei. Na França pós-revolucionária, esse pensamento foi extremamente influente.
- A ideia codificadora surge dessa crença no legalismo. A criação de códigos compreensivos buscava substituir o emaranhado de leis, costumes e princípios que existiam de forma fragmentada. O objetivo era criar um sistema de leis claro, completo e acessível.
Cronologia dos Códigos e seus Objetivos
- 1804 – Código Civil: Também conhecido como Código Napoleônico, foi o primeiro e mais influente dos grandes códigos franceses. Este código desempenhou um papel central na formação do direito civil moderno, influenciando profundamente os sistemas jurídicos de diversos países. Ele buscou consolidar, sob um único texto, as regras de direito privado, assegurando os princípios de liberdade e igualdade proclamados pela Revolução.
- 1806 – Código de Processo Civil: Este código estabeleceu as normas e procedimentos que os tribunais deveriam seguir na condução de casos civis, buscando uma justiça mais eficiente e previsível.
- 1807 – Código Comercial: Foi criado para regular as relações entre comerciantes e as atividades comerciais, refletindo a crescente importância da atividade comercial na França.
- 1808 – Código de Instrução Criminal: Este código organizava o processo penal e os procedimentos de investigação criminal.
- 1810 – Código Penal: Estabeleceu as infrações penais e as respectivas sanções, marcando a separação entre o Direito Penal e o Direito Civil.
Significância e Impacto do Movimento Codificador
- Unificação do Direito: Os códigos consolidaram e unificaram o direito francês, que antes era um mosaico de leis locais e costumes. Essa unificação foi vital para afirmar a identidade e soberania da nação francesa recém-formada.
- Exportação do Modelo Francês: Os códigos franceses foram tão bem-sucedidos que serviram de modelo para a codificação de leis em muitos outros países, disseminando os princípios do Direito Civil Francês (e, portanto, do Direito Romano) em escala global.
- Clareza e Acessibilidade: A codificação buscou tornar as leis claras, sistemáticas e acessíveis, de modo que os cidadãos pudessem conhecer seus direitos e deveres. Isso foi um avanço democrático significativo, contrastando com o antigo regime, onde as leis eram frequentemente obscuras e desconhecidas do público em geral.
- Estabilidade e Previsibilidade: Os códigos buscavam garantir que as regras fossem estáveis e previsíveis, elementos fundamentais para a segurança jurídica e o desenvolvimento econômico.
Críticas ao Movimento Codificador
- Apesar de seus méritos, o movimento codificador também foi criticado. Alguns alegam que ele foi excessivamente rígido e inflexível, não permitindo que o direito se adaptasse facilmente às mudanças sociais e econômicas. Outros críticos apontam que, em alguns casos, os códigos podem ter refletido e reforçado as estruturas de poder e as desigualdades existentes na sociedade da época.
Em resumo, o Movimento Codificador Francês foi um projeto ambicioso e transformador que deixou um legado duradouro. Ele representou uma das mais significativas realizações do pensamento legalista e desempenhou um papel crucial na formação do Direito moderno, não apenas na França, mas em todo o mundo.
3. Superioridade da Lei
A crença na superioridade da lei é um dos pilares do positivismo jurídico. Essa ideologia, solidificada no contexto da Revolução Francesa, sustenta que a lei, como expressão da vontade geral, está acima de todas as outras formas de normas e é a fonte principal do direito. Abaixo, detalhamos este tópico:
3.1. Lei como Expressão da Vontade Popular e do Direito Natural
A ideia de que a lei representa tanto a vontade do povo quanto os princípios do direito natural é um produto da Revolução Francesa. Neste período, emergiu a crença de que o direito deveria ser criado e expresso através de leis claras e racionais, que refletissem os interesses da nação.
Exemplo: A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, estabeleceu a ideia de que a lei é a expressão da vontade geral, servindo como um mecanismo para transpor os direitos naturais em normas concretas e aplicáveis.
3.2. Necessidade de Controle das Decisões dos Juízes
O positivismo jurídico insiste na ideia de que juízes não devem ter o poder de criar o direito, mas sim de aplicar a lei de forma mecânica. Isso é concebido como uma forma de evitar o arbítrio judicial e garantir que o direito seja aplicado de maneira igual para todos.
Exemplo: A lei francesa de 1790, que proibiu os juízes de interpretar a legislação (embora tenha sido rapidamente revogada), é um exemplo claro dessa desconfiança em relação ao poder judicial.
3.3. Montesquieu e a “Boca da Lei”
Montesquieu, no seu influente trabalho “O Espírito das Leis” (1748), propôs a teoria da separação dos poderes e afirmou que juízes deveriam ser apenas “a boca da lei”. Segundo ele, os juízes deveriam se comportar como seres inanimados, limitando-se a aplicar a lei sem adicionar sua interpretação pessoal.
3.4. Interpretação Literal da Lei
O positivismo jurídico também é marcado pela crença na interpretação literal da lei. A ideia é que se juízes interpretam a lei e modificam seu significado, a sociedade acaba sendo regida pela vontade dos juízes e não pela vontade do povo, que a lei deveria representar.
Exemplo: Em casos em que a lei afirma que “não se pode construir em área de preservação permanente”, o juiz, sob essa ótica, não teria liberdade para interpretar o que se considera uma “área de preservação permanente” de forma diferente do que está explicitamente definido em outras normas ou regulamentos.
3.5. A Lei Acima do Estado
Este princípio reforça que a lei, sendo a expressão da vontade geral e estando fundamentada na racionalidade, está acima do próprio Estado e de seus agentes. Isso serve como um mecanismo de controle e limitação do poder estatal, estabelecendo um sistema em que ninguém, nem mesmo o rei ou o governo, está acima da lei.
Exemplo: Isso é vivenciado na prática quando um governo é levado a tribunal por violar sua própria legislação e é julgado conforme essas leis, demonstrando que a lei está acima do poder do Estado.
Em síntese, a superioridade da lei no contexto do positivismo jurídico representa a concretização de uma visão racional e sistemática do direito, na qual a certeza e a previsibilidade são valores fundamentais, e na qual a lei, enquanto expressão da vontade geral e reflexo do direito natural racional, é posta como alicerce central do sistema jurídico.
4. Positivismo na França
O positivismo jurídico na França desempenhou um papel significativo na evolução da teoria do direito e no sistema jurídico, estabelecendo as bases para a forma como o direito é entendido e aplicado na sociedade moderna. Este tópico é dividido em duas escolas principais: a Escola da Exegese e a Escola da Evolução Histórica do Direito.
4.1. Escola da Exegese
4.1.1. Descrição e Fundamentos
A Escola da Exegese surgiu na França no século XIX, especialmente após a promulgação do Código Civil francês em 1804 (também conhecido como Código Napoleônico). Esta escola defende que o principal papel dos juristas é a análise meticulosa e a interpretação literal das leis e dos códigos.
4.1.2. Características
- Interpretação Literal: A Escola da Exegese sustenta que as leis são claras, completas e autossuficientes. Os juristas devem, portanto, interpretar as leis de maneira literal e objetiva.
- Código Civil como Pedra Angular: Para os exegetas, o Código Civil francês era visto quase como um texto sagrado, perfeito e completo, que deveria ser aplicado de forma rigorosa.
- Desconsideração da Realidade Social: Os exegetas geralmente não levavam em conta as mudanças sociais ou os valores morais ao interpretar a lei. Para eles, a lei escrita era a única fonte de direito relevante.
4.1.3. Exemplo
Um exemplo da aplicação da Escola da Exegese pode ser um caso em que a lei estabelece que “o contrato torna-se nulo se uma das partes estiver sob coação”. Nesse caso, um exegeta interpretaria essa disposição de forma muito estrita e literal, sem considerar as circunstâncias ou a equidade da situação.
4.2. Escola da Evolução Histórica do Direito
4.2.1. Descrição e Fundamentos
A Escola da Evolução Histórica do Direito, embora também positivista, diverge da Escola da Exegese ao admitir que a interpretação da lei pode ser atualizada de acordo com as mudanças sociais e históricas. Esta escola vê a lei como uma expressão da vontade geral que pode e deve evoluir ao longo do tempo.
4.2.2. Características
- Interpretação Atualizadora da Lei: Esta escola aceita que as leis podem ser interpretadas à luz das condições atuais da sociedade, não apenas conforme o entendimento da época em que foram criadas.
- Reconhecimento de Outras Fontes de Direito: Enquanto mantém a lei como a fonte primária de direito, essa escola admite que outras fontes, como costumes e princípios gerais do direito, possam ter relevância.
- Contexto Histórico e Social: Os juristas desta escola levam em conta o contexto histórico e social em que a lei foi criada e em que é aplicada, permitindo uma adaptação das normas às novas realidades.
4.2.3. Exemplo
Suponhamos que uma lei do século XIX estabeleça regras para “cartas manuscritas”. A Escola da Evolução Histórica do Direito permitiria que essa lei fosse interpretada para aplicar-se às “mensagens de email” nos dias atuais, considerando a intenção original da lei e adaptando-a ao contexto atual de comunicação digital.
Em resumo, o positivismo jurídico na França, através da Escola da Exegese e da Escola da Evolução Histórica do Direito, desempenhou um papel crucial na sistematização e na modernização do direito, estabelecendo as bases para a relação entre a lei, sua interpretação e sua aplicação na realidade social. Ambas as escolas, apesar de suas diferenças, compartilham do entendimento de que a lei escrita é a fonte primária e superior do direito.
5. Positivismo na Alemanha
O positivismo jurídico na Alemanha desenvolveu-se de maneira distinta em comparação com a França, destacando-se por um rigoroso método científico de interpretação do direito. Os dois juristas alemães mais influentes deste período são Georg Friedrich Puchta e Rudolf von Ihering, que, embora partilhassem do espírito positivista, tinham abordagens significativamente diferentes quanto à natureza e à finalidade do direito.
5.1. Georg Friedrich Puchta (1798-1846)
5.1.1. Descrição e Fundamentos
Puchta é considerado um dos maiores juristas do século XIX na Alemanha. Ele é conhecido por sua abordagem sistemática e lógica ao direito, partindo de conceitos fundamentais.
5.1.2. Características
- Jurisprudência dos Conceitos: Puchta é uma das figuras centrais da Jurisprudência dos Conceitos. Esta escola enfatiza a importância dos conceitos abstratos e gerais na interpretação do direito, buscando estruturar o direito de forma lógica e sistemática.
- Cientificidade do Direito: Puchta defendia que o direito deveria ser estudado como uma ciência, utilizando métodos rigorosos e lógicos.
- Abstração e Generalidade: Para Puchta, as normas jurídicas deveriam ser entendidas de forma abstrata e geral, não vinculadas a casos concretos, mas como expressões de princípios universais.
5.1.3. Exemplo
Suponha que a lei estabeleça que “um contrato requer o consentimento das partes”. Para Puchta, este enunciado não é apenas uma regra para um caso específico, mas um reflexo do conceito abstrato e geral de “contrato”, que tem o “consentimento” como um de seus elementos essenciais.
5.2. Rudolf von Ihering (1818-1892)
5.2.1. Descrição e Fundamentos
Ihering foi um jurista alemão que marcou uma ruptura com a abordagem puramente conceitual do direito, propondo uma nova forma de entender e aplicar as normas jurídicas: a Jurisprudência dos Interesses.
5.2.2. Características
- Jurisprudência dos Interesses: Ihering desenvolveu a ideia de que o direito existe para proteger e equilibrar os diferentes interesses presentes na sociedade. Segundo ele, a função do direito é resolver conflitos de interesses de forma justa e eficiente.
- Norma como Conciliação de Interesses: Para Ihering, cada norma jurídica representa uma solução para um conflito de interesses. Ele argumentava que a interpretação das normas deve ser feita considerando os interesses que a norma pretende proteger.
- Hermenêutica Teleológica: Ihering é associado ao desenvolvimento da hermenêutica teleológica, que defende que a interpretação de uma norma deve ser feita considerando a finalidade que ela busca alcançar. Ou seja, é preciso entender qual o objetivo (telos) da norma.
5.2.3. Exemplo
Imagine uma lei que proíbe a construção de edifícios acima de um certo número de andares em uma área residencial. Para Ihering, o intérprete desta lei deveria identificar os interesses que ela busca proteger (por exemplo, a tranquilidade e o bem-estar dos residentes da área) e interpretar a lei de maneira a efetivar esses interesses, em vez de se concentrar apenas na literalidade da norma.
5.3. Resumo
O Positivismo na Alemanha, por meio de Puchta e Ihering, apresenta uma dualidade que marca profundamente a teoria jurídica: de um lado a busca pela estruturação científica e lógica do direito (Puchta) e, de outro, a visão do direito como um conjunto dinâmico de normas destinadas a equilibrar os diversos interesses sociais (Ihering). Ambas as abordagens contribuem para a formação de um sistema jurídico altamente técnico e sofisticado na Alemanha.
6. Positivismo na Inglaterra
Na Inglaterra, o positivismo jurídico teve como uma de suas figuras mais notáveis John Austin, cujo trabalho buscou distinguir claramente o direito positivo de outras normas e regras sociais. Seu pensamento foi um marco na teoria jurídica e influenciou profundamente a compreensão do direito na tradição de common law.
6.1. John Austin (1790-1859)
6.1.1. Imperativismo
Austin defendia uma visão imperativista do direito. Para ele, as normas jurídicas são comandos emitidos por um soberano (uma pessoa ou um grupo de pessoas) a quem a sociedade está habituada a obedecer. Estes comandos impõem deveres e, quando desobedecidos, são acompanhados de sanções.
Exemplo
Se uma lei estabelece que roubar é crime e impõe uma pena de prisão como sanção, esta lei é um comando do soberano que impõe um dever (não roubar) aos membros da sociedade, com uma sanção específica em caso de desobediência.
6.1.2. Positivismo e a Soberania do Estado
Austin argumentava que, em cada sociedade, existe um soberano a quem a maioria está habituada a obedecer e que não está habituado a obedecer a ninguém. Para Austin, o Estado é esse soberano, e suas normas, expressas em leis, são as superiores.
6.1.3. Limitação do Direito às Normas Estatais
Segundo Austin, o direito limita-se às normas estatais, desconsiderando normas que não se originam do Estado como parte do sistema jurídico.
6.1.4. Ciência do Direito e a Neutralidade
Austin defendia que a ciência do direito deve se concentrar em estudar o que as leis são, e não se elas são justas ou injustas. Ele insistia na separação entre o estudo científico do direito e as considerações sobre sua “bondade ou maldade”.
Exemplo
Se uma lei permite a pena de morte para certos crimes, o papel do jurista, sob a perspectiva de Austin, seria analisar como essa lei funciona, quem a emitiu e quais comportamentos ela regula, sem se envolver em discussões sobre se a pena de morte é moralmente aceitável ou não.
6.2. Implicações e Críticas
6.2.1. Rigidez e Formalismo
A abordagem de Austin foi criticada por sua rigidez e formalismo, pois se foca quase exclusivamente na figura do soberano e na estrutura das normas, desconsiderando outras fontes de direito, como costumes e princípios jurídicos.
6.2.2. A Questão da Soberania
A ideia de um soberano único e indivisível, que está no centro da teoria de Austin, enfrenta desafios em sociedades modernas complexas e em contextos onde a autoridade é dividida e compartilhada entre várias instituições (por exemplo, em sistemas federais).
6.2.3. Ausência de Preocupação com a Justiça
A abordagem de Austin, ao focar no que o direito é e não no que ele deveria ser, foi criticada por ignorar questões de justiça e moralidade, que muitos veem como centrais para a compreensão e avaliação do direito.
6.3. Resumo
O positivismo jurídico na Inglaterra, exemplificado pelo trabalho de John Austin, representa uma abordagem rigorosa que busca clareza e precisão na análise do direito. Essa abordagem teve um impacto duradouro, especialmente na tradição de common law, e estabeleceu uma base sólida para o estudo científico do direito, embora tenha sido objeto de críticas significativas, especialmente em relação ao seu formalismo e sua desconsideração de questões de justiça.
7. Esquema Positivista
O esquema positivista representa uma abordagem estruturada e sistematizada para entender o direito. Este esquema pode ser resumido em três etapas principais: a fundamentação da lei (que pode ser a vontade do povo, conceitos fundamentais, ou vontade do Estado), a criação da lei e o uso da dedução para produzir a sentença. Vamos explorar cada uma destas etapas minuciosamente.
7.1. Fundamentação da Lei
7.1.1. Vontade do Povo
Neste modelo, a lei é entendida como a expressão da vontade geral do povo. Este conceito tem raízes no contrato social de Rousseau e na ideia de soberania popular.
Exemplo
Em uma democracia, as leis são frequentemente criadas por representantes eleitos que, em teoria, agem de acordo com a vontade do povo que os elegeu.
7.1.2. Conceitos Fundamentais
Algumas teorias positivistas, como a Jurisprudência dos Conceitos na Alemanha, baseiam-se na ideia de que o direito é construído a partir de conceitos fundamentais.
Exemplo
A ideia de que um contrato é um acordo de vontades que cria obrigações legais é um conceito fundamental no direito civil.
7.1.3. Vontade do Estado
Nesta visão, as leis são comandos do soberano, que é o Estado. Esse é um aspecto central do pensamento de Austin.
Exemplo
Em um regime autoritário, as leis podem ser diretamente impostas pelo Estado, sem consideração significativa para a vontade do povo.
7.2. Criação da Lei
Nesta etapa, os fundamentos acima descritos são traduzidos em leis concretas. Essas leis são formuladas de maneira geral e abstrata e são estabelecidas através de um processo legislativo.
Exemplo
O Congresso ou Parlamento debate e aprova um projeto de lei, que depois é sancionado pelo Presidente ou Monarca, transformando-se assim em lei.
7.3. Uso da Dedução para Produzir a Sentença
Nesta fase, os juízes aplicam a lei ao caso concreto. Segundo o esquema positivista, isso deve ser feito de maneira dedutiva e mecânica. Os juízes, aqui, são vistos como “bocas da lei”, na expressão de Montesquieu.
Exemplo
Se a lei proíbe roubar e alguém é acusado de roubo, o juiz, de acordo com essa abordagem, simplesmente aplicaria a lei ao caso, determinando se o ato do acusado se enquadra na definição legal de roubo e, em caso afirmativo, aplicando a sanção prevista.
7.4. Implicações e Críticas
7.4.1. Risco de Mecanicismo
Críticos apontam que essa abordagem pode ser excessivamente rígida e mecânica, ignorando a complexidade e as nuances dos casos individuais.
7.4.2. Ignoração da Justiça Material
O esquema positivista, focando na aplicação dedutiva da lei, pode, segundo críticos, negligenciar questões de justiça material, ou seja, se o resultado é efetivamente justo.
7.4.3. Dificuldade de Adaptação a Novos Problemas
O estrito positivismo legal pode ter dificuldade em adaptar-se a novos problemas que não foram previstos pelo legislador, dada sua ênfase na aplicação literal e dedutiva da lei.
7.5. Resumo
O esquema positivista representa uma estrutura de entendimento do direito que enfatiza a clareza, a certeza e a previsibilidade, centrando-se na lei como a principal fonte do direito. Essa abordagem teve um profundo impacto na formação de sistemas jurídicos em todo o mundo, mas também tem sido objeto de críticas significativas, especialmente em relação ao seu potencial para produzir resultados mecanicistas e insensíveis às complexidades da vida real e às demandas de justiça.
8. Desfecho: Formação do Sistema Romano-Germânico
Contexto Histórico e Influência da Revolução Francesa
A Revolução Francesa (1789-1799), com suas radicais transformações sociais e políticas, teve um papel fundamental na configuração do Sistema Jurídico Romano-Germânico, que hoje é predominante em grande parte da Europa continental e em outras regiões do mundo. O movimento revolucionário que ocorreu na França inspirou a codificação e a nacionalização do direito em vários países, marcando a transição de um sistema baseado em costumes e jurisprudências para um sistema ancorado em códigos escritos.
Generalidade e Abstração das Regras
Uma das consequências mais significativas deste movimento foi a transformação da natureza das regras jurídicas. Em vez de serem vistas como respostas ad hoc para casos concretos, as regras passaram a ser entendidas como normas gerais e abstratas. Isso significa que as leis não são mais feitas para resolver uma disputa específica, mas para estabelecer um padrão de comportamento aplicável a uma ampla variedade de situações. Esta abstração eleva as leis acima das aplicações práticas cotidianas e das decisões dos tribunais.
Papel Central da Lei
Neste novo paradigma, a lei escrita torna-se a principal fonte do direito. A essência da atividade do jurista, neste contexto, transforma-se: em vez de criar o direito através da jurisprudência (como era comum no sistema do direito romano), o jurista passa a ter a tarefa principal de interpretar e aplicar as regras gerais e abstratas estabelecidas na legislação.
Disseminação dos Códigos
A era da codificação, iniciada com a promulgação do Código Civil Francês em 1804 (também conhecido como Código Napoleônico), representou uma visão de que os códigos expressavam a “perfeição” do direito para uma nação. Exemplos de tais códigos são o Código Civil Alemão (BGB, 1900) e o Código Civil Italiano (1942). Estes códigos se tornaram modelos para outros países, e a ideia de codificação do direito civil se disseminou amplamente.
Nacionalização do Direito
A formação do Sistema Romano-Germânico também está ligada à nacionalização do direito. Isso significa que cada nação passou a criar e aplicar seu próprio conjunto de leis, refletindo seus valores, cultura e história específicos. Isso contrasta com o período anterior, em que as normas e princípios do direito romano eram aplicados de maneira bastante uniforme em toda a Europa.
Função das Universidades
No contexto do Sistema Romano-Germânico, as universidades e as faculdades de direito tiveram suas funções redefinidas. Elas se tornaram centros de interpretação e ensino dos códigos nacionais. O estudo do direito tornou-se, em grande medida, o estudo desses códigos, e a formação dos juristas passou a se concentrar na compreensão profunda dessas leis e na habilidade de interpretá-las.
Exemplo:
A Alemanha, na transição do século XIX para o XX, é um exemplo paradigmático dessa evolução. O país adotou o Bürgerliches Gesetzbuch (BGB), seu Código Civil, que entrou em vigor em 1900. Esse código foi fruto de um intenso trabalho de juristas, que buscaram consolidar e harmonizar as diversas normas e costumes que existiam nos diferentes Estados alemães. O BGB é conhecido por sua abstração e técnica, e os juristas alemães têm a tarefa de interpretá-lo para aplicá-lo aos casos concretos, sendo essa interpretação guiada por princípios e conceitos fundamentais previstos no próprio código.
Resumo
O Sistema Romano-Germânico, fortemente influenciado pela Revolução Francesa e pelo movimento de codificação que se seguiu, caracteriza-se pela centralidade da lei escrita, que é geral e abstrata. Esse sistema jurídico se nacionalizou, com cada país adotando seus próprios códigos, que são o objeto central de estudo e interpretação pelos juristas, formados, em grande medida, nas universidades.