Repristinação
13/10/2011Hobbes, Locke e Rousseau
21/10/2011Embora se possa discutir filosoficamente quanto ao formato do ordenamento, questionando se a imagem da pirâmide é ou não a mais adequada para representá-lo, na prática profissional ela ainda parece predominar. O direito, assim, torna-se um conjunto hierárquico e coerente de normas jurídicas, compondo um todo consistente, que não admite as antinomias.
Antinomia significa conflito de normas. Para que ocorra uma antinomia jurídica, três condições devem ser observadas:
1. As normas conflitantes devem emanar de autoridades competentes em um mesmo âmbito normativo, ou, em outras palavras, as normas devem reger, de modo oposto, comportamentos em um espaço comum. Não haveria antinomia se uma lei estadual do Rio de Janeiro determinasse uma coisa e outra lei estadual de Pernambuco determinasse o oposto. Mas haveria antinomia se uma norma jurídica do Estado do Paraná determinasse um comportamento e uma norma municipal de Curitiba estabelecesse outro. Ambas conflitam no espaço da cidade de Curitiba.
2. As normas, preenchida a primeira condição, devem conter comandos que se opõem e, por isso, tornam-se incompatíveis. Podemos, assim, pensar em três situações: a. uma norma jurídica obriga algo e outra proíbe; b. uma norma jurídica permite algo e outra proíbe; c. uma norma jurídica permite algo e outra obriga. No caso “a”, temos a antinomia em seu sentido mais forte, pois algo é obrigatório quando deve ser feito e algo é proibido quando não deve ser feito. No caso “b”, a antinomia ocorre porque uma norma permissiva estabelece que algo pode ser feito ou não, a critério de seu destinatário. A oposição se concretizará se esse destinatário, aproveitando a permissão, pretender fazer algo que é proibido por outra norma. No caso “c”, de modo semelhante à situação anterior, porém em sentido oposto, a oposição se concretizará se o destinatário pretender não fazer algo que é obrigatório por outra norma.
3. O conflito entre as normas deve deixar o destinatário em uma posição insustentável, ou seja, ele não saberá como se comportar: uma pessoa não saberá como agir ou um juiz não saberá como julgar.
Como o art. 2º, §1º da LID estabelece o critério da revogação tácita por incompatibilidade e a antinomia é indício de incompatibilidade entre duas normas, isso significa que uma delas deve ser revogada. Assim, o conflito entre normas é visto pelos profissionais como um problema do ordenamento, que precisa ser resolvido, determinando-se qual das normas conflitantes é válida e qual é inválida.
Existem alguns critérios para ajudar a resolver esse problema: hierárquico, especialidade, cronológico e lei mais benéfica. Vejamos cada um deles.
Pelo primeiro critério, se houver conflito entre duas normas jurídicas, primeiramente devemos verificar qual a hierarquia da autoridade que criou as mesmas. A norma derivada de uma autoridade de hierarquia superior prevalece ante a norma derivada de uma autoridade de hierarquia inferior. A norma constitucional, que deriva da autoridade detentora do poder constituinte, prevalece ante qualquer outra norma. A seguir estão as normas legislativas, que derivam de autoridades dotadas do poder legislativo. Devemos, pois, ter em vista a estrutura do ordenamento para adoção deste critério.
Muitas vezes, porém, o critério da hierarquia se mostra insuficiente para resolver a antinomia, pois as normas conflitantes derivam de um mesmo poder normativo. Podemos, então, recorrer a um segundo critério, a especialidade. Se uma das normas for geral e a outra for especial ou excepcional, esta prevalecerá somente nesses casos especiais ou excepcionais, conservando a outra sua validade para os demais casos (lembremos da classificação das normas jurídicas). Em outras palavras, se a situação for genérica, a ela será aplicada a norma geral; se a situação for especial ou excepcional, será regida pela lei especial ou excepcional. Tal entendimento decorre do art. 2º, §2º da LID.
Pode ocorrer conflito entre duas normas de mesma hierarquia e com o mesmo grau de generalidade. Nesse caso, a norma mais recente irá revogar a mais antiga, nos termos do art. 2º, §1º da LID. Trata-se do critério da cronologia.
Há, ainda, um último critério, o da lei mais benéfica. Em situações de direito público, cujas relações envolvem o Estado e os cidadãos, caso haja o conflito entre normas jurídicas de mesma hierarquia e grau de generalidade, aplicar-se-ia aquela que conferisse melhor tratamento ao cidadão. Em concreto, podemos pensar em situações de Direito Penal nas quais, caso duas normas pretensamente válidas conflite, aplicar-se-ia aquela que estabelecesse a menor pena ao réu.
Esses quatro critérios auxiliam o destinatário das normas jurídicas a tomar uma decisão, escolhendo a qual norma conflitante obedecer, eliminando a antinomia. Em vista disso, podemos dizer que as antinomias admitidas pelo ordenamento jurídico são aparentes, possuindo as condições 1 e 2 elencadas acima: normas emanadas de autoridades com poder normativo em um espaço comum e com conteúdo incompatível. O destinatário, com base em um desses critérios, poderá resolver o conflito.
Pode ocorrer, por outro lado, um conflito entre critérios, levando a uma antinomia de segundo grau. Há alguns metacritérios doutrinários, determinando um desnível entre os critérios, havendo alguns mais fortes e outros mais fracos. Não há unanimidade sobre tais metacritérios, mas majoritariamente a doutrina admite a seguinte ordem:
1. Caso exista um conflito entre o critério hierárquico e o critério cronológico, predomina o primeiro. Por exemplo: uma norma constitucional mais antiga revoga uma norma legal mais recente.
2. Caso exista conflito entre o critério hierárquico e o critério da especialidade, grande parte dos doutrinadores admite que o primeiro prevalece. Por exemplo: uma norma constitucional geral prevalece ante uma norma legal especial.
3. Caso exista conflito entre o critério cronológico e o critério da especialidade, deve prevalecer este último. Por exemplo: uma lei geral sobre contratos, mais recente, não revoga uma lei especial sobre contratos trabalhistas, mais antiga.
Em sendo assim, podemos dizer que o critério mais forte é o hierárquico, seguido pelo da especialidade e pelo cronológico. Salientamos que o art. 9º da Lei Complementar n. 95 determina que a lei mais recente deve, expressamente, enumerar os dispositivos que revoga. Tal exigência enfraquece o critério cronológico pois, se uma lei não indicar expressamente a revogação de uma norma especial, ela deve permanecer válida.
Poucos doutrinadores enfrentam o critério da lei mais benéfica em conflito com outros. Podemos admitir que seja mais fraco do que o critério hierárquico e, talvez, do que o critério da especialidade, sobrepujando apenas o critério cronológico.
Se a antinomia não puder ser resolvida porque os critérios são insuficientes ou inexistentes, então teremos um caso de antinomia real. Salientamos que o juiz de direito nunca admitirá sua existência, devendo resolver o problema durante o julgamento da lide, criando uma norma jurisdicional que adote um critério qualquer, de modo fundamentado. Podemos pensar em uma situação pouco provável: duas normas jurídicas legais conflitantes, de mesma generalidade, são publicadas no mesmo dia. Tratar-se-ia de possível antinomia real.
As antinomias podem ser classificadas como próprias e impróprias. As primeiras envolvem conflitos entre normas obrigatórias, permissivas e proibitivas. As antinomias impróprias envolvem princípios (duas normas jurídicas consagram princípios opostos, como igualdade e liberdade), valorações (duas normas jurídicas atribuem uma valoração diferente a uma mesma conduta, como penas distintas para o mesmo crime) e de finalidades (uma norma propõe um determinado fim e outra consagra meios que não levam a esse fim). Há antinomias impróprias na Constituição Federal brasileira, sendo quase inevitável sua existência nos ordenamentos jurídicos, sobretudo as principiológicas.
As antinomias podem ser internas ou externas. As antinomias internas ocorrem no âmbito territorial de um país; as externas envolvem legislações de países diferentes ou legislações de um país e normas internacionais. O estudo destas últimas fica a cargo do Direito Internacional e, eventualmente, do Direito Constitucional.
Podemos também classificar as antinomias quanto à abrangência do conflito entre as normas jurídicas. A antinomia total-total ocorre quando toda a abrangência de duas normas é conflitante, somente podendo ser resolvida com a revogação integral de uma das normas. A antinomia total-parcial envolve a integralidade de uma norma e apenas parte de outra, podendo ser resolvida com a revogação integral da primeira ou com a revogação parcial da segunda. A antinomia parcial-parcial consiste no conflito entre parte de uma norma e parte de outra norma, devendo ser resolvida com a revogação parcial de qualquer delas.
Podemos citar exemplos:
a. Total-total: a norma 1 estabelece que é proibido conversar nas salas de aula; a norma 2 estabelece que é permitido conversar nas salas de aula. Há um conflito total entre ambas e uma delas deve ser considerada inválida.
b. Total-parcial: a norma 1 estabelece que é permitido conversar no pátio; a norma 2 estabelece que é proibido conversar nas salas, nos corredores e no pátio. A segunda é mais abrangente do que a primeira. A solução é revogar-se toda a norma 1 ou parte da norma 2 (a palavra “pátio”).
c. Parcial-parcial: a norma 1 estabelece que é permitido conversar no pátio e nos corredores; a norma 2 estabelece que é proibido conversar nas salas de aula e nos corredores. Há um conflito entre parte da norma 1 e parte da norma 2 (a palavra “corredores”). A revogação dessa parte de uma das normas não inviabiliza o restante da regra. Assim, sempre será permitido conversar no pátio e proibido conversar nas salas de aula.
Reiteramos, assim, que, no cotidiano profissional, o ordenamento jurídico é considerado um conjunto consistente, não admitindo a existência das antinomias. Caso duas normas conflitem, por descuido do legislador, uma delas deverá ser revogada, perdendo a validade.
Referências:
DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 16ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011. (art. 2º)
FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão e Dominação. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2003. (4.3.2.2.1)