Foucault e o direito
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15/08/2014Pierre Bourdieu (1930-2002) tem influenciado vários estudos contemporâneos de diversas áreas do conhecimento. Sua obra parte de uma perspectiva da sociedade que é capaz de levar em consideração sua complexidade e as diversas disputas desenvolvidas em seu interior.
Seus conceitos centrais, apresentados a seguir, permitem uma leitura produtiva em áreas tão diversas quanto a arte, a educação e o direito. Na crítica literária brasileira, por exemplo, estudiosos influenciados pelo seu pensamento têm buscado compreender a origem social do escritor contemporâneo para caracterizar a falta de heterogeneidade de nosso campo literário, refletindo em uma visão limitada veiculada em suas obras. Autores que não sejam homens, brancos, de classe média, trabalhando com a palavra (docência ou jornalismo), ainda têm grande dificuldade para ver seu texto reconhecido como “literatura de qualidade”.
Apresentando os conceitos centrais de Bourdieu, o espaço social é subdividido por campos, dentro dos quais os agentes e grupos têm suas posições fixadas. O campo (artístico, político, jurídico…) possui uma autonomia lógica, funcionando conforme critérios próprios que valorizam de modo diferente seus elementos, sendo marcado por disputas em torno dos interesses específicos da área (riqueza, poder, verdade, beleza, justiça…).
Para cada campo haverá uma valorização própria dos capitais que o compõem. A ideia de capital, assim, não é exclusiva da economia. Embora o capital econômico exista no espaço social, sendo sinônimo de dinheiro, seu peso relativo não é o mesmo em todos os campos. Há ainda o capital cultural, que corresponde a títulos, conhecimentos, bagagem, experiência, e o capital social, que corresponde às redes de contatos e relacionamentos dos agentes.
O capital simbólico pode ser visto como a síntese dos capitais econômico, cultural e social dentro de um campo, que levará em consideração o peso relativo de cada um. Assim, por exemplo, em termos ideais, no campo científico, o peso do capital cultural é maior do que os demais, tornando-se mais poderoso aquele que acumula maior quantidade de títulos acadêmicos e produz trabalhos mais notáveis.
A perspectiva de Bourdieu, porém, nada tem de ideal. Cada campo deve ser estudado em concreto, compondo um espaço social determinado. Observando-se o mesmo campo científico, voltando ao exemplo, agora em casos concretos, podemos perceber o peso do capital cultural decaindo em benefício dos outros capitais. Assim, numa situação, pode ocorrer de o peso do capital social tornar-se determinante, vindo a ter mais destaques não os cientistas mais estudiosos, mas aqueles mais bem relacionados dentro e fora do campo. Ou, ainda, noutra situação, o peso do capital econômico pode predominar e os cientistas que possuem, por um meio ou outro, mais acesso ao dinheiro ascendem no campo.
Em suma, sua perspectiva é bastante valiosa para a compreensão das relações sociais e impede o desenvolvimento de concepções “ingênuas”, supondo que apenas um determinado tipo de capital basta para conferir uma posição hegemônica dentro do campo.
O direito é considerado um campo social que se constitui com o monopólio profissional sobre os serviços jurídicos. Seus operadores são agentes especializados que se situam como mediadores entre os envolvidos em um conflito e suas demandas e produzem uma fala específica na sociedade, marcada pela linguagem jurídica. Esses agentes são os advogados, juízes, promotores e funcionários do Poder Judiciário.
Cada um desses agentes é selecionado pelos futuros pares, e o exercício das respectivas funções é uma prerrogativa legal. Assim, um novo advogado deve ser graduado em direito e aprovado em uma prova realizada pelo órgão de classe dos advogados. Um novo juiz será também graduado em direito e aprovado em concurso público presidido por juízes de instâncias superiores. Graças a essa estrutura seletiva, garante-se o monopólio dos serviços jurídicos e a formação do campo.
O capital específico do campo jurídico deriva da capacidade reconhecida de interpretar os textos normativos e solucionar conflitos. Os operadores, enquanto intermediários entre os envolvidos no conflito, articulam as falas das partes conforme regras próprias do campo, buscando a interpretação mais favorável. Entre si, desenvolvem um habitus, ou seja, características comuns que derivam do estilo semelhante de vida, modo de se vestir, falar e comportar.
No geral, há uma tendência, no caso dos advogados, de representarem clientes de classe social similar a que ocupam externamento ao campo. Um advogado de classe alta, por exemplo, tende a representar um cliente também de classe alta ou uma empresa em situação econômica privilegiada. Já um advogado de classe inferior costuma representar clientes de classes mais baixas ou empresas em situação econômica menos favorecida.
Há uma divisão entre os operadores do direito que corresponde, em geral, à posição ocupada dentro do campo. Nos patamares superiores situam-se os chamados “teóricos”, aqueles que interpretam textos jurídicos elaborando doutrinas, como os professores, os juízes superiores e os advogados mais renomados. Nos patamares inferiores encontram-se os “práticos”, que simplesmente interpretam textos legais a partir de casos concretos, resolvendo conflitos, como os juízes de instância inferior e os advogados em geral.
É interessante destacar que os operadores do direito controlam não apenas o acesso ao campo, mas também lutam por delimitar suas fronteiras. Nesse caso, a luta envolve outros campos e varia historicamente. Conforme o momento, a sociedade pode passar por um período de “judicialização”, quando normas jurídicas, em geral derivadas de lei, são criadas para regerem mais e mais situações sociais. Noutro momento, porém, pode ocorrer um recuo do campo, deixando de haver normas legais sobre determinadas situações.
Um exemplo de alargamento do campo jurídico é a edição do Marco Civil da Internet, lei que passa a regular juridicamente alguns procedimentos na internet, até então deixados fora do campo. Por outro lado, as pressões pela flexibilização dos direitos trabalhistas podem soar como pressões por um recuo do campo jurídico.
Há uma imagem do campo que preconiza a existência de algumas regras fundamentais para seu funcionamento que somente podem ser conhecidas por pessoas treinadas (em cursos de graduação) para nele trabalharem. Um exemplo é a crença de que a interpretação é um processo lógico dedutivo que deriva de um silogismo no qual a lei é a premissa maior e os fatos correspondem à premissa menor. Só quem aprende a “pensar juridicamente” pode operar no campo.
Destacamos que essa imagem é construída pelos próprios operadores do direito e serve para justificar a existência do campo e do monopólio que exercem sobre o mesmo. A partir dela, afasta-se a possibilidade de uma pessoa, sem formação em direito, atuar juridicamente, pois passa a ser considerada desprovida de conhecimento para tanto. “Só com advogado se faz justiça” é um bordão constantemente repetido pelos próprios advogados.
O momento mais marcante de disputa no campo jurídico se manifesta no processo de elaboração da sentença. Nesse momento, os profissionais manejam seus capitais para obter a interpretação judicial reputada mais interessante às respectivas partes representadas, obtendo uma decisão favorável. O sucesso dependerá, portanto, do uso adequado de capital simbólico pelo profissional interessado na resolução da lide (juiz e advogados, por exemplo).
Para finalizar, reiteramos que Bourdieu oferece uma contribuição valiosa para o estudo sociológico do direito. Do ponto de vista do profissional, é sempre oportuno lembrar que há disputas internas por posições de destaque no campo e tais disputas não são resolvidas apenas com o uso do capital cultural específico da ciência jurídica, mas também com o uso do capital social e econômico. Em outras palavras, um profissional de sucesso não é apenas aquele que se capacita cientificamente (especializando-se), mas também aquele bem relacionado e com acesso a recursos financeiros.
Referência:
- CHASIN, Ana Carolina. Considerações sobre o direito na sociologia de Pierre Bourdieu. In: RODRIGUES e SILVA. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013.