Profissões jurídicas: Advocacia (III)
19/11/2014Karl Marx (1818-1883)
01/04/2018Em nossa série de postagens sobre a advocacia, traçamos um panoramafocando no monopólio profissional, apresentamos seus espaçosde atuação e suas formas de atuar. Nesta última postagem, discutiremo: a feminização da advocacia e a questão da ética do advogado, na relação com o cliente e na busca de concretização da justiça.
O tema da feminização das profissões jurídicas é bastante estudado pela sociologia do direito e presente na advocacia. O número mulheres advogadas aumenta bastante nas últimas décadas e tende a ultrapassar o de homens em várias partes do mundo. Isso, por si, já deve ser observado com interesse, pois tradicionalmente, de modo preconceituoso, a profissão é associada ao sexo masculino.
Pesquisa britânica realizada no início da década de 1980 revelou a forte presença dessa imagem. Os próprios juristas entrevistados caracterizaram a advocacia como uma atividade “agressiva”, “objetiva”, “lógica”, “pragmática”. O problema é a associação cultural feita em seguida: tais características seriam próprias dos homens. As mulheres, conforme os entrevistados, seriam “fracas”, incapazes da objetividade por se “envolverem emocionalmente” com as causas, seu modo de pensar não seria lógico, mas intuitivo e místico, e seriam muito utópicas. Além disso, os juristas afirmam que a mulher, por ser um “objeto sexual”, poderia tirar proveito dessa situação, captando mais clientes, mas, também, poderia perder oportunidades, não sendo tratada com seriedade. Por fim, as mulheres, ainda na visão dos entrevistados, tenderiam a priorizar a família e a ideia de serem mães, abrindo mão da carreira.
BONELLI registra que, no Brasil, seguindo tendência mundial, haveria uma nova divisão social do trabalho jurídico, promovendo duas separações: ramos tradicionais de ramos inovadores; trabalho rotineiro de trabalho mais reflexivo e aprofundado. Os ramos tradicionais tendem a ser executados de modo rotineiro, repetitivo, pelas mulheres que ingressam na advocacia. Essa nova divisão do trabalho seria facilitada, pois, pela feminização.
Observando os números de advogados brasileiros, em agosto de 2014 havia 379.632 mulheres e 445.507 homens, numa proporção de 46% de advogadas e 54% de advogados. Historicamente, há uma constante evolução na presença feminina. Se olharmos a porcentagem, percebemos a tendência de as advogadas serem majoritárias em pouco tempo.
O fenômeno é mundial. Em 2011, havia a seguinte porcentagem de advogadas: 45,4% na Bélgica; 51,9% na França; 32% na Alemanha; 42% na Itália. Na Espanha, em 2010 havia 40,2% de advogadas e no Reino Unido, em 2009, havia 45,2%. Em todos os casos, mesmo na Alemanha que possui menor porcentagem, a progressão é constante.
Se olharmos para os departamentos jurídicos, conforme dados da revista Análise, podemos confirmar a divisão sexual do trabalho jurídico. Em 2010, havia 49% de mulheres compondo as equipes desses departamentos; entre diretores, as mulheres eram apenas 33%. Em 2013, as mulheres ultrapassam os homens nas equipes estudadas, chegando a 54%; entre diretores, o número chega a apenas 35%. Assim, na advocacia, as mulheres podem, efetivamente, estar ocupando posições da base, tendo dificuldades para chegar ao topo das carreiras.
Tratemos agora da ética dos advogados. No Brasil, vimos que a Constituição Federal proclama, no artigo 133, sua indispensabilidade para a administração da justiça. O Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei 8906/94) repete essa afirmativa no artigo 2º. Em seu parágrafo primeiro, a lei acrescenta que “o advogado presta serviço público e exerce função social”.
Essas normas merecem críticas por consolidarem questões sempre suscetíveis de discussão. Da perspectiva da sociologia das profissões, não podemos aceitar a atribuição de importância de uma profissão feita pelos seus membros, pois pode ser apenas uma justificativa ideológica para o monopólio exercido. Como vimos na primeirapostagem, a OAB participou ativamente da constituinte da década de 1980, consolidando seu projeto profissional de modo a ampliar as esferas de atuação da advocacia. Portanto, as normas correspondem a sua visão sobre o tema.
A fim de corresponder a alguém que é indispensável à administração da justiça, presta serviço público e exerce função social, o advogado deve proceder de modo especial, conforme previsão no seu Estatuto. O artigo 31, por exemplo, exige que aja de forma a tornar-se “merecedor de respeito” e a contribuir para o prestígio da advocacia, sendo independente e não tendo receio de desagradas as autoridades ou ser impopular. O artigo 33, além disso, estabelece que o advogado deve respeitar os deveres constantes do Código de Ética, elaborado pela própria OAB.
Tanto o Estatuto quanto o Código de Ética remontam à década de 1990, quando a advocacia brasileira começava a ganhar os contornos atuais. Ainda estão presos a um modelo tradicional de atuação, artesanal, com prestação de serviço individualizado. Repudiam a “mercantilização” e o “aviltamento” da profissão, proibindo anúncios publicitários, vedando a “captação” de clientes e estabelecendo patamares mínimos de honorários.
Essas posturas “éticas” da OAB não se justificam se submetidas a uma análise valorativa mais meticulosa. Resposta à consulta feita ao Tribunal de Ética da OAB de São Paulo, por exemplo, veda a instalação de escritório de advocacia em estações de metrô: “as áreas em estações de METRÔ, assim como acontece com shopping centers, supermercados, farmácias, aeroportos, são locais de convivência física incompatível com escritórios de advocacia, porque se prestam à prática do comércio e atividades afins, de natureza mercantil” (proc. E-4346/2014).
A visão do Tribunal relativamente ao metrô percebe apenas a possibilidade de “mercantilização” da profissão, mas não avança na “nobreza da motivação”: “por mais nobre que seja a motivação do advogado, chega a ser até intuitiva a percepção de que a instalação de escritório nas dependências do METRÔ tem como finalidade primeira potencializar, ao grau máximo, a exposição, mediante aproveitamento do enorme fluxo diário de pessoas que circulam nas estações, o que implica, direta ou indiretamente, inculca ou captação de clientela ou causas (art. 34, IV, do Estatuto da OAB; art. 7º, CED), justamente por conta de acesso privilegiado a clientela cativa, com interferência na distribuição natural dos serviços, em prejuízo a outros advogados da mesma localidade”. Ora, o ponto central da consulta é dar acesso à população a advogados bons e baratos. O metrô não seria um lugar privilegiado para isso? Ao contrário do afirmado, nada há de intuitivo na consulta.
Outro exemplo extraído do mesmo Tribunal paulista consiste na possibilidade de o advogado prestar consultoria jurídica online, via internet. Ela é também vedada pelo Tribunal (proc. E-4384/2014). Novamente o ponto de vista de controle sobre a profissão prevalece ante a possibilidade de ampliar o acesso a ela pela população. O modelo de atuação do advogado é, como dissemos, o tradicional, completamente desconectado de nossa realidade presente.
Embora essa desconexão seja patente, as discussões sobre o novo Código de Ética, cujo projeto foi elaborado pela OAB, não a enfrentam. Esse projeto mantém o repúdio genérico à mercantilização (“o exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização”) e à captação de clientes e não regula a possibilidade de prestação de serviços pela internet. Parece, portanto, pouco avançar nessas questões fundamentais.
Quando se fala em ética profissional, um campo de análise costuma ser a relação entre advogado e cliente. No Brasil, essa relação pode ser vista pela perspectiva do profissionalismo, sendo controlada pela própria OAB, ou do direito do consumidor, tornando-se tema de responsabilidade profissional, a ser averiguada via Poder Judiciário.
No primeiro caso, há a competência dos Tribunais de Ética de apurarem reclamações contra advogados. Porém, esses tribunais são compostos pelos próprios advogados, o que gera uma pressuposição de suspeição e corporativismo. Estudando situações levadas a órgãos de fiscalização de classe na advocacia norte-americana, RHODE conclui que apenas 5% das reclamações resultam em sanções. Em sua opinião, toda autorregulação tende a falhar, pois a proteção de que os consumidores necessitariam seria maior do que a fornecida pelos profissionais.
Um problema adicional ocorre em situações de efetivo controle sobre o conhecimento. Como o cliente pode avaliar o trabalho de seu advogado? A expectativa do cliente, conforme CAIN, ou derivaria de um senso comum muito vago, ou da própria visão criada pelos advogados.
MATHER relata pesquisas que tentam encontrar as causas de mau comportamento dos advogados norte-americanos. Uma famosa pesquisa foi realizada por ABEL, constando que o advogado se comporta mal por razões similares a de qualquer profissional: combinação de problemas psicológicos, como uma crise de stress ou depressão, com problemas econômicos, familiares ou sociais. Outra pesquisa citada foi realizada pela Associação de Advogados dos EUA (ABA), constatando que direito de família, responsabilidade civil e direito imobiliário seriam os ramos com mais reclamações contra advogados.
O autor analisa o caso de advogados que atuam em divórcio, para tentar entender esse elevado número de reclamações. Esses advogados, por questões econômicas, trabalhando individualmente ou em escritórios pequenos, não podem rejeitar clientes, mesmo aqueles considerados “difíceis”. A soma desse cliente “difícil” com um advogado sobrecarregado de trabalho e sujeito a pressões diversas, poderia explicar tais reclamações.
Outro tema ligado a essa relação entre advogado e cliente é o controle recíproco: quem controla quem? As perspectivas mais tradicionais, oriundas da década de 1970, preconizam que o advogado controla o cliente, por meio de uma linguagem especializada, categorizações aplicadas às situações fáticas e pela individualização despolitizadora dos temas (tudo torna-se suscetível de ser resolvido por demandas individuais).
CAIN, porém, não percebeu isso em pesquisa na qual analisou 82 relações. Nelas, em 67 casos o cliente controlava o advogado, indicando suas necessidades e elegendo seus objetivos. Houve 10 casos de controle pelo advogado e 5 casos duvidosos. Os clientes eram, em sua maioria, empresas ou oriundos da classe média, inviabilizando a tese de que os advogados seriam agentes da burguesia na sociedade capitalista.
As análises mais recentes, conforme LEWIS, tenderiam a ver a relação sem papeis sociais pré-definidos, porém flexíveis e negociáveis. Assim, a relação advogado-cliente seria sempre renegociada, cada um buscando impor seu ponto de vista em situações específicas. Essa constante renegociação interferiria nas próprias fronteiras do jurídico no sentido daquilo o que pode ser resolvido pelo advogado, ampliando-se ou reduzindo-se tais fronteiras caso a caso.
Saber quem controla a relação é fundamental para definir a responsabilidade em caso de um comportamento duvidoso praticado pelo advogado em nome do cliente ou mesmo de mau comportamento desse advogado. A ideologia preconizada pela OAB, por exemplo, insiste em que o advogado deve abster-se de praticar atos antiéticos, pressupondo sua autonomia profissional e consequente controle sobre a relação. Mas isso não costuma ser verdadeiro em casos de assalariamento da profissão (em departamentos jurídicos) ou de escritórios contratados por clientes corporativos de grande riqueza.
A última questão a tratar é: será que no sistema de advocacia privada o advogado pode atuar em nome da justiça? O número de advogados prestando serviços pro bono tem crescido em todo o mundo. Estudo da Associação de Advogados do EUA (ABA), de 2008, indicou que ¾ dos advogados realizariam algum tipo de serviço dessa natureza, dedicando, em média, 41h anuais a ele. CUMMINGS destaca um fenômeno interessante: a profissionalização do serviço pro bono nos grandes escritórios de advocacia norte-americanos. Metade deles possuiria um coordenador full-time do serviço de assistência.
Além dessa atuação assistencial, é inegável a existência de advogados lutando por noções de justiça social ou enfrentando regimes políticos autoritários. Portanto, a advocacia privada não inviabiliza, num primeiro momento, essa atuação predominantemente ética.
CUMMINGS avalia, assim, positivamente o fato de advogados dedicarem tempo e recursos a clientes pobres ou causas relevantes. Porém, a advocacia privada causa limitações a essas possibilidades: em última instância, caso haja conflito de interesses, os advogados tendem a priorizar seus clientes pagos e seus interesses econômicos, em detrimento dos valores socialmente relevantes. Com isso, tendem a evitar a atuação judicial ou política em causas que possam desagradar esses clientes.
Em sentido muito parecido, ABEL pergunta-se: o direito é só um conjunto de regras ou possibilita a efetivação da justiça? Estudando a Associação de Advogados (BAR) da Califórnia, de 1927 a 2007, percebe que quase toda sua energia é dedicada à manutenção do monopólio profissional (exclusão de competidores, controle da mercantilização, combate a faculdades…) e quase nenhuma à democratização de acesso à advocacia e ao controle da qualidade dos serviços profissionais.
Sua conclusão pode finalizar esta postagem: há inúmeros exemplos de advogados social ou politicamente engajados, deixando interesses econômicos de lado. Todavia, em sociedades desiguais, a advocacia privada tende a reproduzir as desigualdades e não a combatê-las. Como a maior parte do tempo é dedicada a clientes pagos, seus interesses serão mais defendidos, perpetuando a estrutura social.
Referências:
- ABEL, Richard L. Apenas direito? (2011)
- BONELLLI, Maria da Gloria. Profissionalismo, Gênero e Diferença nas carreiras jurídicas. São Carlos: EDUFSCar, 2013.
- CAIN, Maureen. Advogado generalista e o cliente: para uma concepção radical.
- CUMMINGS, S. Advogados e seus clientes.
- FERREIRA, Adriano de Assis. Advocacia em Ebulição.
- LEWIS, Philip. Aspectos do profissionalismo: contruindo a relação advogado-cliente.
- MATHER, Lynn. Como e por que os advogados agem errado? Advogados, disciplina e controle colegial.
- RHODE, Deborah L. Regulação profissional e serviço público: uma agenda incompleta.