Profissões jurídicas: Advocacia (I)
17/11/2014Profissões jurídicas: Advocacia (III)
19/11/2014Podemos identificar dois espaços básicos de atuação do advogado brasileiro: o escritório de advocacia e o departamento jurídico de empresa. Ambos passam por um período de transformações que podem modificar significativamente a profissão.
Tomando como referência dados divulgados pela revista Análise, a Caixa Econômica Federal possui o maior departamento jurídico, por número de advogados, entre as empresas consultadas, desde 2010: 952 advogados em 2010; 907, em 2011; 963, em 2012; 973, em 2013. Comparando os dados de quatro bancos, relativamente a 2010 e 2013, percebemos que em três deles o número de advogados cresceu.
Observando dados de 2013, a revista apurou que os jurídicos possuem uma equipe composta por uma maioria de mulheres (54%), por grande quantidade de pessoas com 35 anos ou menos (47%), e com alta porcentagem de pós-graduados em sentido amplo (68%) e em cursos de MBA (19%). Já entre os diretores, a maioria é de homens (65%), a faixa etária predominante é entre 36 e 45 anos (48%) e a porcentagem de pessoas com pós-graduação cai um pouco (62%), mas a porcentagem de cursos de MBA sobe bastante (30%).
Tradicionalmente, o departamento jurídico de uma empresa deve atuar de dois modos: preventivo e contencioso. A atuação preventiva envolve a integração do departamento com a empresa, podendo ocorrer na delimitação de políticas institucionais e na elaboração ou revisão de documentos, de forma a evitar problemas jurídicos futuros. A atuação contenciosa envolve a resolução de um litígio já em curso.
Nem toda atividade jurídica é desenvolvida pelo próprio departamento. Muitas vezes, ocorre a “terceirização” de sua execução. O mais comum é o jurídico de uma empresa contratar um ou alguns escritórios de advocacia para cuidarem de seu contencioso, em parte ou na integralidade. A amplitude dessa delegação varia conforme o contexto e os interesses da empresa.
Nos Estados Unidos, como reportam SUSSKIND e TROTTER, haveria um movimento de ampliação dos departamentos jurídicos e redução de atividades transferidas a escritórios. Esse movimento envolveria, sobretudo, atividades padronizadas e repetitivas, que deixariam de ser delegadas aos caros escritórios e passariam a ser executadas por um corpo de advogados contratados para essa finalidade. Também, para diminuir custos, os jurídicos ampliariam a atuação preventiva, evitando o surgimento de demandas.
No Brasil, ainda faltam estudos, mas podemos afirmar que vários departamentos jurídicos têm feito o oposto, transferindo seu contencioso para escritórios que variam conforme o perfil: casos repetitivos para escritórios que prestam o serviço denominado “contencioso de massa”; casos mais relevantes para escritórios especializados em serviços “estratégicos”. Parece que aqui, nas situações massificadas, é mais barato contratar um escritório do que contratar advogados para compor a equipe, talvez em virtude de nossa legislação trabalhista ser mais rigorosa.
A atuação contenciosa dos departamentos jurídicos e/ou escritórios contratados, em alguns setores, não mais pode ser limitada ao Poder Judiciário. Novas instâncias estatais decisórias exigem uma diversificação: PROCONs, Agências Reguladoras, CADE, Banco Central… Muitas vezes, o mesmo caso tramita por duas instâncias, simultaneamente. A gestão do contencioso, assim, divide-se conforme o ramo de atividade da empresa, englobando setores especializados correspondentes a cada instância decisória (ou escritórios terceirizados).
Esse panorama relativamente aos departamentos jurídicos interfere, como veremos adiante, na situação dos escritórios de advocacia. Pensando na advocaciade modo genérico, contudo, podemos acompanhar as constatações de BONELLI em seus trabalhos, apontando três fenômenos que a atingem globalmente:
- Aumento de densidade e de estratificação;
- Feminização;
- Presença crescente das pessoas jurídicas (em especial, empresas).
Relativamente ao aumento de densidade, já demonstramosque ocorre em nosso país na postagem anterior. De 41 advogados por 100mil habitantes, em 1970, passamos a 311, em 2013. GALANTER aponta um aumento significativo em diversos países, comparando-se dados de 1970 com 2000: a densidade dobra nos Estados Unidos, Austrália, França, Israel e Itália; triplica no Canadá, Espanha e Reino Unido; quadruplica na Alemanha, Holanda e Portugal.
Mas o aumento não é apenas de densidade, como também de estratificação. BONELLI afirma que a advocacia era exercida em escritórios individuais ou partilhados e passa a escritórios estratificados. Podemos pensar que havia uma proporção similar de advogados assalariados e advogados sócios, com participação nos lucros do escritório. Hoje, as categorias de advogados não-sócios ampliaram-se, havendo vários níveis e uma grande quantidade deles em relação aos sócios.
Novamente, trata-se de fenômeno global. TROTTER afirma que em 1960, 80% dos advogados norte-americanos que ingressavam em um grande escritório tornavam-se sócios; hoje, 80% não se tornam. Observando-se a proporção de não-sócios para sócios, em 1950 havia vários escritórios com maioria de sócios. Hoje, é quase impossível isso ocorrer. A maioria dos escritórios norte-americanos apresenta mais de dois não-sócios para cada sócio.
Essa estratificação leva, ainda pensando na advocacia norte-americana, a um aumento de lucratividade dos sócios. O lucro anual médio de cada sócio dos cinquenta maiores escritórios, em 1985, foi 626 mil dólares (corrigidos pela inflação); em 2010, o lucro anual médio foi de 1milhão e 712mil dólares, quase triplicando. TROTTER estima que, nesse ano de 2010, 67 firmas de advocacia pagaram mais de 1milhão a seus 6.254 sócios, que correspondiam a menos de 0,5% dos advogados norte-americanos. Infelizmente ainda não obtivemos dados sobre o mercado brasileiro.
Outro fenômeno que marca a advocacia mundial é a feminização. Voltaremos a tratar dele noutra postagem, mas antecipamos que há um crescimento da participação de mulheres em vários países. Em 2011, havia mais de 40% de advogadas na Espanha, Bélgica e Itália. Na França, esse número superava os 50%, tornando-se majoritário. No Brasil, em 2014, as advogadas chegaram a 46% do total, sendo maioria na faixa etária até 40 anos.
A presença de pessoas jurídicas de natureza empresarial é detectada por GALANTER (2011), indicando que, em 1967, nos Estados Unidos, 55% dos clientes eram pessoas físicas e 39%, pessoas jurídicas. Em 2002, os clientes pessoas físicas caíram para 41% e as pessoas jurídicas subiram para 47,7%. Em sua análise, os fóruns estariam povoados por empresas, que consomem parcela cada vez maior de serviços jurídicos providos por advogados de elite em base contínua (lembremos que foca os Estados Unidos).
No Brasil, conforme BONELLI, as privatizações de final da década de 1990 levaram ao fechamento de departamentos jurídicos de empresas públicas e à contratação de escritórios de advocacia, movimentando o setor. A isso, devemos acrescentar que houve uma expansão do consumo a partir dos anos 2000, passando a incluir camadas populares em fatias antes restritas do mercado nacional. Essa soma leva ao contencioso de massa em direito do consumidor, mudando o perfil de nossa advocacia.
Os departamentos jurídicos de empresas segmentam suas necessidades em contencioso estratégico e contencioso de massa. Para o primeiro segmento, são contratados escritórios renomados, algumas vezes pequenos e altamente especializados (as “boutiques”), compostos por profissionais formados em faculdades “de elite”, com cursos de especialização, mestrado e/ou doutorado. Para o segundo, são contratados escritórios que se especializam na prestação massificada de serviços de advocacia, em âmbito regional ou, de preferência, nacional, com advogados contratados para a realização padronizada de atos processuais rotineiros.
Convém explicitar nossa peculiaridade em relação aos Estados Unidos: lá, o grande escritório é de elite e atende as principais empresas do mundo. Conforme GALANTER (2011), são cada vez maiores (em 1970, o maior escritório possuía 200 advogados; atualmente, o maior possui mais de 3000 advogados) e mais hierarquizados. Os serviços rotineiros das empresas, como vimos no início, tendem a ser feitos pelos respectivos jurídicos, internamente.
O mesmo GALANTER, em 1983, usou a expressão “mega-law” e “megafirma” para designar tais escritórios norte-americanos que surgiam no período. Reproduzimos a tabela que criou para compará-los com os escritórios tradicionais, na qual fica clara sua perspectiva de que prestam os serviços de melhor qualidade e maior preço:
No Brasil, o grande escritório, hoje, é o escritório que presta serviços de contencioso de massa para as empresas, focado em direito do trabalho e, principalmente, direito do consumidor. Sua atuação corresponde às megafirmas em organização, operação e relação com o cliente, mas adota um estilo comparável à advocacia ordinária (aproveitando os termos da tabela). É interessante notar que o próprio GALANTER previu algo assim em seu artigo de 1983, afirmando que a poderia surgir um tipo de escritório combinando elementos da megafirma a técnicas de padronização e rotinização. Seu “erro”, porém, foi pensar em clientes individualizados para tais escritórios. Aqui, os clientes são empresas.
Podemos comparar alguns escritórios, observando o número de advogados, conforme dados extraídos das revistas Latin Lawyer e Análise. O escritório Pinheiro Neto cresce significativamente, em número de advogados, até 2006, diminuindo o ritmo a partir de então. Seu foco é o contencioso estratégico e o consultivo. O escritório Demarest & Almeida ultrapassa o Pinheiro Neto em 2006, mas opta, nos anos seguintes, por também priorizar o estratégico e o consultivo, deixando de lado o contencioso de massa. Dessa opção, surge o JBM, que logo se torna o maior escritório do Brasil, realizando exclusivamente contencioso de massa. O Siqueira Castro, por seu lado, passa a priorizar o contencioso de massa, tornando-se o segundo maior escritório (obs. apenas nos referimos ao número de advogados e não à lucratividade).
Em 2010, partindo do levantamento realizado pela Análise, de mais de 500 escritórios consultados, 38 ultrapassavam os 100 advogados. Dois escritórios ultrapassavam os 500 advogados (JBM e Siqueira Castro) e três escritórios ultrapassavam os 300 advogados (Décio Freire, Tozzini Freire e Pinheiro Neto). Em 2013, 53 possuíam 100 advogados ou mais. Três escritórios ultrapassavam os 700 advogados (JBM, Siqueira Castro e Nelson Willians). Embora mais nenhum ultrapassasse os 500 advogados, 11 possuíam entre 300 e 400 advogados (Décio Freire; Fragata e Antunes; Tozzini Freire; Machado, Meyer, Sendacz e Opice; Costa Bertholdo; Pinheiro Neto; Dantas, Lee, Brock e Camargo; Albuquerque Pinto; Barbosa Müssnich & Aragão; Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga; Sette Câmara, Corrêa e Bastos).
Olhando os 14 maiores escritórios citados pela revista em 2013, que ultrapassam os 300 advogados, notamos que, somados, possuem 6.185 advogados, sendo 509 declarados como sócios e 5.676 não-sócios. A proporção é de cerca de 11 não-sócios para cada sócio. Cinco desses escritórios possuem 6 sócios ou menos. Além disso, 11 indicaram uma proporção maior de casos em contencioso e apenas 3 indicaram proporção maior de consultivo (Tozzini Freire; Pinheiro Neto; Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga).
Os dados parecem revelar uma constante ampliação dos escritórios de advocacia, intensificada nos últimos anos em um segmento específico: contencioso de massa. Além disso, se não confirmam explicitamente a tese de uma maior hierarquização, ao menos demonstram haver grande concentração de capital.
Algumas possíveis tendências, a partir desses dados e de outras observações realizadas, podem ser apontadas:
- O grande escritório (100 ou mais advogados) caminha para o contencioso de massa, especializando-se em poucos ramos do direito, atuando em âmbito regional ou nacional e tendo como clientes as grandes empresas;
- O escritório de porte médio apresenta-se ainda como full-service (atua em praticamente todos os ramos), privilegiando uma atuação estratégica (contenciosa, contratual), consultiva e, aos poucos, oferecendo serviços próprios ou de assessoria em ADRs (meios alternativos de resolução de disputas, como arbitragem, por exemplo);
- O escritório de pequeno porte torna-se a boutique, especializando-se profundamente em um ou dois ramos, atuando de modo estratégico ou consultivo.
Dessas tendências, excluímos o cliente pessoa física, não por acaso. Se o cliente possui alto poder aquisitivo, contrata um escritório de porte médio ou pequeno que presta serviços a um custo elevado. Porém, nos casos derivados de relações massificadas (consumo, trabalho, previdenciário, FGTS…) e/ou nos quais o cliente possui baixo poder aquisitivo, será atendido por escritórios pequenos, advogados autônomos ou assessorias jurídicas (públicas ou privadas). Algumas vezes, no caso dos Juizados Especiais ou da Justiça do Trabalho, ingressará com ação sem acompanhamento do profissional.
Causas derivadas de relações massificadas, individualmente, envolvem, no geral, valor pequeno para justificar que o cliente contrate um advogado, remunerando-o conforme a Tabela de Honorários da OAB. O cliente, assim, caso contrate o advogado, pode vir a ser cobrado em desacordo com essa tabela, pagando valores inferiores ou simplesmente pagando apenas uma porcentagem do valor ganho com a causa.
Esse tipo de advocacia costuma tornar-se precária e, muitas vezes, dependente de mecanismos questionáveis, como, no caso do Estado de São Paulo, do convêniomantido com a Defensoria e custeado com dinheiro público (Fundo de Assistência Judiciária). Em fevereiro de 2014, 37.305 advogados estavam inscritos nesse convênio, o equivalente a cerca de 15% dos advogados paulistas.
Temos, assim, um descompasso nas causas massificadas: os grandes escritórios de contencioso de massa são altamente lucrativos ao atenderem às empresas; já o atendimento aos clientes individuais, no outro polo da causa, é deficitário ou pouquíssimo lucrativo. Parece haver uma oportunidade no horizonte: é preciso ser criada uma estrutura jurídica privada nova, voltada a esses clientes, marcada pela inovação e pelo recurso à tecnologia de ponta, tornando o atendimento altamente lucrativo.
Esse tipo de estrutura enfrentaria, num primeiro momento, resistências da OAB, pois reformataria as bases da profissão e ameaçaria seu controle sobre o mercado. Porém, dado seu potencial de inclusão ao sistema judiciário, permitindo o acesso à Justiça, poderia vencer tais resistências.
A advocacia privada brasileira exclui pessoas de baixa renda e de baixa escolaridade. Levantamento realizado pela Escola de Direito de São Paulo (FGV), para o período 1º trimestre de 2013 ao 1º trimestre de 2014, mostra:
- Com relação à renda, já ingressaram com ação judicial: 35% dos entrevistados que ganham até 1SM; 41%, de 1SM a 4SM; 48%, de 4SM a 8SM; 52%, 8SM ou mais;
- Com relação à escolaridade: 38% dos entrevistados de baixa escolaridade; 45%, de média; 61%, de alta.
Notadamente, como os entrevistados são pessoas físicas, aqueles que ingressaram com ações no Judiciário o fizeram em áreas de contencioso de massa: 30% em causas trabalhistas e 25% em causas de consumo. Além disso, 20% dos entrevistados já receberam cobrança indevida de uma empresa e não conseguiram resolver o problema com ela; 15% dos entrevistados já perderam o emprego e não receberam o que deveriam do empregador. Há, pois, enorme potencial de mercado para uma advocacia reestruturada nesses segmentos.
Na próxima postagem, discutiremos as formas de atuação do advogado e as forças que pressionam por mudanças.
Referências:
- BONELLLI, Maria da Gloria. Profissionalismo, Gênero e Diferença nas carreiras jurídicas. São Carlos: EDUFSCar, 2013.
- FERREIRA, Adriano de Assis. Advocacia em Ebulição.
- GALANTER, Marc. Mega-law e mega advocacia nos EUA contemporâneo, 1983.
- GALANTER, Marc. Mais advogados que pessoas: a multiplicação global de profissionais jurídicos, 2011.
- SUSSKIND, Richard. Tomorrow´s Lawyers – an introduction to your future. Oxford: Oxford University Press, 2013.
- TROTTER. Declining Prospects – How extraordinary competition and compensation are changing America´s major law firms. North Charleston (SC): CreateSpace Independent Publishing Platform, edição kindle, 2013.