Luhmann e o direito
08/08/2014Bourdieu e o direito
14/08/2014Michel Foucault (1926-1984) é um dos pensadores mais instigantes do século XX. Sua obra percorre temas variados, sempre problematizando o conhecimento e sua relação com o poder. Sua produção intelectual passa, em termos esquemáticos, por três fases: arqueologia, genealogia e hermenêutica.
A arqueologia corresponde a sua primeira grande fase intelectual, iniciada nos anos 1960 com a publicação de História da Loucura (1961). Nesse livro, o autor investiga a formação de um “conhecimento” sobre a loucura que passa a considerá-la irracional e seu portador (o louco), um doente mental que precisa ser tratado e devolvido à normalidade da razão, muitas vezes por meio de castigos e punições.
Seu método de investigação dos discursos que pretendem apresentar um “saber” sobre determinados temas e determinadas pessoas procura indícios revelando o momento em que surgem esses discursos, como circulam entre os especialistas, como se estruturam e quais os efeitos que provoca nos sistemas de conhecimento existentes. Assim, como mencionado, Foucault mostra como surge um discurso sobre o “doente mental” e como esse discurso interfere no conhecimento sobre as pessoas.
Por procurar reconstituir os discursos a partir de fragmentos, de textos isolados, seu trabalho se assemelha ao do arqueólogo, reconstituindo as características de uma civilização a partir de uma peça, de um osso ou de uma pintura.
Com os livros subsequentes, O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e Arqueologia do saber (1969), consolida como grande tema da fase o estudo efetivo do “saber”, ou seja, aquele conhecimento que termina por circular em determinados meios como científico. Seu objetivo não é mostrar a verdade ou a falsidade dos discursos que estuda, mas mostrar como eles, em si, são parciais e assumem uma forma de verdade absoluta que não possuem.
Esse método leva a um aprofundamento que instaura a fase intelectual da genealogia. Os estudos sobre os “saberes” revelam que são produzidos em relações sociais específicas, marcadas pelo poder. Seu objeto passa a ser, então, essas relações e os reflexos disso nos sujeitos tratados pelos “saberes” (aqueles considerados “normais” ou “anormais”).
O texto A ordem do discurso (1970) pode ser apontado como de transição. Foucault destaca o regime político de produção da “verdade” e desconstrói alguns mitos científicos e filosóficos ocidentais:
- A ideia de que o poder corrompe e o saber neutraliza essa corrupção, presente desde a filosofia socrática, é questionada. Os saberes são produzidos no cerne de relações de poder e servem a interesses concretos, internos a essas relações;
- A ideia de que poder e saber são campos separados, correspondendo, por exemplo, à política (poder) e à ciência (saber), também é questionada. Haveria uma penetração constante entre poder e saber, cada qual referindo-se ao outro. O poder legitima saberes e é por eles legitimado;
- A ideia de que o saber é neutro, por fim, desmorona. Se o saber é produzido em relações de poder, para servir interesses concretos, dependendo do poder para ser aceito enquanto conhecimento, não pode ser neutro, mas sempre é interessado ou comprometido.
Durante a fase da genealogia, Foucault enfoca a questão da pessoa a quem o saber se refere, enfrentando o tema do assujeitamento. Sua perspectiva não é simplesmente a dominação, mas a sujeição. Entender como as pessoas, em uma relação de poder, desenvolvem estratégias para mandar ou se sujeitar. Assim, ao mesmo tempo, Foucault percebe que os saberes instauram comportamentos considerados normais e legitimam relações de poder nas quais pessoas são assujeitadas. Com o livro Vigiar e Punir (1975) emerge a ideia de poder disciplinar, ao qual voltaremos adiante.
A terceira fase de Foucault, a hermenêutica, surge com os volumes dois e três da História da Sexualidade, já na virada da década de 1970 para a de 1980. Nos livros dessa coletânea, incompleta devido ao seu falecimento, vemos as três fases articuladas. Há a arqueologia dos discursos que querem produzir a verdade sobre o sexo; a genealogia que revela as redes de poder disciplinando os indivíduos para “normalizar” o sexo; a hermenêutica, enfatizando a constituição do indivíduo como sujeito do desejo, reformando ou conformando sua conduta conforme as ideias e formas de vida do seu presente.
Há, portanto, nessa fase, uma análise das relações éticas entre os indivíduos que nascem no cerne de formas de saber e instituem padrões normais de subjetividade em face de tipos diversos de sujeitos. Foucault passa a investigar as relações do indivíduo de si para consigo, introjetando ou repelindo os padrões exigidos de comportamento, conformando-se ou resistindo.
Foucault não estuda diretamente o direito, salvo em poucas observações laterais. Sua análise sobre a produção inquisitorial da verdade, por exemplo, relaciona-se com a perspectiva jurídica e com a formação do processo moderno. Mas há um problema ao tentarmos aproximá-lo dos temas jurídicos tradicionais: o direito pressupõe uma estrutura de poder centralizada pelo Estado rechaçada pelo autor como fundamental.
Seus estudos da fase genealógica revelam uma “microfísica” do poder, contraposta à “macrofísica” do poder soberano estatal. Sua perspectiva enfatiza as relações concretas nas quais aparecem estratégias, táticas, técnicas de poder e revela que ele se encontra diluído na sociedade, não concentrado nas mãos do Estado, da polícia e do exército.
A partir de Vigiar e Punir (1975), Foucault percebe que o poder soberano estatal que explicitamente se exerce sobre os corpos de criminosos, sobretudo no século XIX, torna-se improdutivo. O Estado, ao punir criminosos com o suplício (tortura e execuções públicas), mobiliza um gasto de poder desproporcionalmente elevado em relação ao corpo do réu.
A sociedade produz, então, mecanismos mais eficientes de exercício do poder, surgindo uma tecnologia de controle social discreta e calculada, atingindo não apenas o corpo, mas sobretudo a alma do indivíduo. Esse poder é a disciplina. Ela aparece nas prisões modernas, mas também nas fábricas, como mostra o autor no livro citado.
A partir de então, não há um gasto exorbitante do poder soberano do Estado para punir indivíduos desviantes, mas um gasto calculado de poder fragmentado na sociedade para produzir corpos dóceis, evitando os crimes e qualquer tipo de “anormalidade”. As técnicas do poder disciplinar espalham-se pelos espaços sociais, sempre “domesticando” e “adestrando” pessoas:
- Os corpos são distribuídos no espaço em células individuais ou setorizadas, havendo um enclausuramento funcional dos indivíduos;
- Há um minucioso controle do conteúdo das atividades realizadas pelos corpos em suas células, cuja execução exige determinados atos padronizados e previamente determinados;
- Essas atividades são distribuídas em um tempo contínuo, subdivididas nesse cronograma em sequências menores de atividades;
- Cada corpo será colocado num espaço para desempenhar, seguindo a linha temporal, uma série de atividades conforme o princípio da eficiência.
Essas técnicas aparecem na distribuição de criminosos por celas, conforme a periculosidade ou outros critérios, na distribuição dos alunos em carteiras na sala de aula ou na distribuição de funcionários na empresa. Todos recebem diretrizes comportamentais que podem ser sintetizadas em tarefas distribuídas no tempo. A essas técnicas se unem alguns mecanismos de exercício do poder disciplinar:
- Observação hierárquica – o corpo alocado nem espaço e com atividades a serem desempenhadas torna-se visível e transparente ao olhar do observador que controla;
- Julgamento – a todo instante o corpo é avaliado no desempenho de suas funções ou nos atos de sua vida, devendo corresponder ao padrão “normal” que pode ser atingido por meio de eventuais exercícios corretivos;
- Saberes – durante o processo avaliativo, vários saberes sobre o comportamento do corpo são produzidos e utilizados para transformar o indivíduo.
Podemos ilustrar esses meios em uma sala de aula. A posição dos alunos, distribuídos em carteiras, é tal que o professor pode observá-los no desempenho de suas tarefas, previamente distribuídas no tempo. Durante essa execução, os alunos são submetidos ao julgamento do professor, que os avalia e submete a novas atividades para corrigir as “deficiências de aprendizado”. Por fim, essa prática gera conhecimentos pedagógicos e de psicologia da educação, que serão reutilizados na turma e em outras turmas para aperfeiçoar a produção de alunos obedientes e que aprendem tudo que lhes for ensinado.
A sociedade do século XX transforma-se na sociedade disciplinar. Diversas de suas instâncias tornam-se espaços de exercício desse poder: academias de ginástica, asilos, consultórios, escolas, hospitais, prisões… No extremo, o próprio indivíduo, transformado em um corpo dócil e socialmente útil, aprende a se disciplinar, exercendo sobre si mesmo esse poder.
É importante destacar que Foucault considera o poder disciplinar algo produtivo e útil. Ao contrário da visão clássica que reputa o poder algo negativo, proibitivo, que apenas castiga o corpo, aquele poder é associado a saberes que o norteiam e a uma transformação da subjetividade em um novo ser.
Voltando à sociologia do direito, alguns estudos inspiram-se direta ou indiretamente no poder disciplinar. Estudos ligados à criminologia, à execução penal ou à constante observação das pessoas por meio de aparelhos eletrônicos articulam-se a ele.
Para finalizar, ainda se torna interessante, do ponto de vista jurídico, especialmente do direito público, ressaltar o conceito de governamentalidade, que emerge principalmente do livro Segurança, território, população, de 1978. Trata-se de um poder associado a um saber que analisa a população para desenvolver os territórios de uma nação.
Seus temas são a riqueza e fertilidade do solo, a saúde e a mobilidade da população, entre outros. Permite a formação de sistemas de conhecimento sobre o território e a população que permite a adoção de medidas públicas em nome de melhorias pontuais ou globais. Por exemplo, podemos ver essa governamentalidade quando analisam-se as condições de proliferação do mosquito da dengue, adotando-se medidas para sua erradicação; ou estudos de criminologia que associam altas taxas de criminalidade a condições sociais ou urbanas.
Referências:
- DEFLEM, Mathiew. Sociology of Law. Cambridge: CUP, 2008.
- RODRIGUES e SILVA. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013.