Capitalismo monopolista, Estado e Direito
11/02/2014Proin sed quam hendrerit nonummy
29/04/2014A lógica que justifica a intervenção estatal na economia deriva da crença na necessidade de correção, por meio do Estado, das crises cíclicas do capitalismo e na incapacidade de a lei da oferta e da procura gerar um equilíbrio econômico com justiça social. Nas últimas décadas, contudo, parece fortalecer uma nova crença: a de que o Estado não seria capaz de realizar essas novas tarefas de modo satisfatório, devendo abster-se novamente de interferir na economia.
O modelo keynesiano perde, gradativamente, a hegemonia. Sua perspectiva preconiza um aumento do gasto público para financiar o crescimento da economia, por meio de atividades diretas do Estado ou da oferta de empréstimos a empresários que possam atuar em setores específicos. Esse gasto exige um aumento de carga tributária e da obtenção de empréstimos por parte do próprio Estado.
Se a economia crescer no ritmo esperado, a nova riqueza gerará uma arrecadação tributária maior e permitirá ao Estado o pagamento de suas dívidas. Mas, se os gastos estatais não forem eficientes e não causarem o crescimento esperado da economia, a arrecadação não será suficiente e as dívidas estatais se avolumarão. Para compensar isso, novos tipos de tributos precisarão ser criados e sufocarão ainda mais a atividade produtiva. Gera-se um círculo vicioso marcado pela explosão tributária.
O Estado intervencionista agigantado mostra-se incapaz de atuar diretamente na economia. Suas empresas, sobretudo em países periféricos, são ineficientes; os serviços prestados são de péssima qualidade. Além disso, os financiamentos estatais à iniciativa privada nem sempre dão o retorno esperado, seja em termos de criação de empregos, seja em termos de crescimento econômico.
Aos poucos, a população começa a perceber que paga tributos apenas para sustentar o Estado enquanto cabide de empregos e meio de obtenção de influência política entre partidos que disputam o poder. Em outras palavras, os tributos passam a ser usados para o pagamento de salários de funcionários nem sempre competentes. Num ambiente em que a legitimidade é obtida pelo atendimento a demandas sociais e pelo controle das crises econômicas, há um fracasso estatal nos dois setores.
Além disso, o modelo keynesiano perde força também por outra razão, a crise ecológica. Sua lógica é a do crescimento eterno da economia. Somente com isso as crises de excesso de produção seriam evitadas, gerando-se o pleno emprego da população também crescente e a espiral de consumo. Mas esse crescimento tem limites naturais: os recursos naturais e o equilíbrio do meio ambiente.
Cálculos indicam que não haveria recursos suficientes para sustentar o patamar de consumo do homem médio norte-americano caso fosse adotado pela maioria dos outros países. Além disso, a poluição causada pela atividade econômica pode levar o planeta ao colapso. A partir daí surgem propostas econômicas alternativas, que não valorizam o consumo desenfreado e a ideia de crescimento perene da economia.
A partir de meados para final da década de 1970 inicia-se a terceira revolução industrial, com consequências profundas para o capitalismo. O uso de novas tecnologias na produção e no consumo, sobretudo ligadas à informática, causam mudanças significativas nessas esferas, a começar pela produção.
Novas técnicas de organização empresarial substituem o modelo fordista, chamadas genericamente de pós-fordistas. Enquanto as empresas fordistas são grandes, com muitos trabalhadores especializados, as empresas pós-fordistas segmentam-se em unidades menores, com poucos trabalhadores flexíveis. Essas empresas operam em rede mundial, com cada unidade facilmente desmontável e remontável em outra parte do mundo (para buscarem um custo de mão-de-obra inferior ou fugirem de pressões governamentais).
A produção pós-fordista substitui o trabalho humano em diversos ramos industriais pelo uso da tecnologia e sobretudo da tecnologia da informação. A classe trabalhadora, com isso, deixa de ser fundamental para a produção, que pode ser rotinizada e gerida por programas de computador até mesmo em setores como os serviços e as profissões. Surgem pressões por mudanças na legislação trabalhista, rígida, feita para indústrias fordistas, para tornar-se mais flexível, acompanhando o padrão produtivo que se consolida.
Há um incremento na imaterialidade da economia. Na produção, como dito, a tecnologia da informação assume papel fundamental. Com ela, surgem produtos digitais e há uma valorização extraordinária do conhecimento, capaz de gerar a inovação, essencial na rotina das novas empresas. As marcas tornam-se mundiais e se espalham, criando uma “individualidade padronizada”. A moeda e o dinheiro são substituídos pelo cartão de crédito e pelas remessas eletrônicas, além de se disseminarem as mercadorias financeiras. A internet assume papel central na economia, disseminando o conceito de “nuvem” e de bens digitais que não circulam no meio físico. Por fim, a própria indústria cultural se diversifica, assumindo um caráter “sob demanda”, tornando os bens culturais muito mais complexos e dependentes da citada internet.
A riqueza deixa de ser gerada pelo trabalho humano e se relaciona mais diretamente com o conhecimento científico, a tecnologia da informação e a citada imaterialidade. As empresas buscam a inovação acima de uma rotina imutável, sendo essencial lançar o novo produto antes dos concorrentes. Mas, ao mesmo tempo, a possibilidade de manter-se em posição hegemônica em virtude de uma inovação dura cada vez menos tempo.
O fenômeno chamado globalização é acentuado na década de 1980 e, principalmente, na de 1990. Todavia, há uma reestruturação global das relações econômicas, políticas e sociais, gerando novos atores dominantes e perpetuando velhos. As disparidades continuam e, por vezes, se agravam.
Surgem vários agentes políticos supranacionais que interferem no funcionamento dos Estados nacionais, enfraquecendo a noção de soberania: cada vez menos tais Estados exercem seus poderes de modo incontrastável em seu território. Esses agentes difusos, como empresas multinacionais, entidades internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização das Nações Unidas…) e investidores capitalistas moldam as políticas nacionais conforme seus interesses e perspectivas ideológicas.
Em algumas nações o padrão de legitimidade sofre nova mudança. Se no período intervencionista passou da legalidade para a eficácia das políticas públicas, agora, sem abandonar esse último padrão, também recorre ao discurso da inevitabilidade. Assim, governantes justificam suas condutas como sendo as únicas possíveis para evitar o colapso estatal e o isolamento internacional.
O novo ambiente econômico é caracterizado pelo pós-fordismo; o novo ambiente político, pela perda de poder do Estado. O mundo contemporâneo é o mundo da complexidade, da informação difusa e excessiva, da descrença em verdades absolutas. O tempo unidimensional fordista do processo, das fases sucessivas, é substituído pelo tempo da rede, dos processadores múltiplos, da instantaneidade simultânea: várias coisas ao mesmo tempo, de uma vez, em paralelo, gerando um resultado quase imediato. O espaço físico, por seu lado, torna-se o espaço virtual, sem fronteiras, sem distâncias.
O Direito também se fragmenta e se “desregula”. O Poder Judiciário segue funcionando conforme padrões pré-fordistas, adotando a temporalidade sequencial do processo, excessivamente lenta, desconectada do mundo contemporâneo das relações instantâneas. É invadido por inúmeras ações que demoram muito para serem julgadas, muitas delas tendo como parte o próprio Estado, agigantado e sem clareza em sua atuação, principalmente tributária. Tornam-se cada vez mais fortes os meios alternativosde resolução de controvérsias, como a arbitragem, a conciliação e a mediação.
O próprio processo judicial é interrompido em sua lógica pela necessidade da tentativa de conciliação, muitas vezes impondo um acordo não desejado pela parte mais vulnerável da relação. Os principais conflitos entre empresas são deslocados para os tribunais arbitrais, resumindo-se o Judiciário, na maioria das vezes, aos casos massificados. A mediação aprofunda-se de modo diferente nos conflitos, levando a resultados mais satisfatórios para as partes.
Esse panorama revela a fragmentação dos mecanismos de resolução de conflitos, demonstrando a possibilidade de perda de monopólio do Estado na produção jurisdicional. Acompanha o enfraquecimento da soberania estatal e do papel da lei na sociedade. O surgimento de meios de resolução de disputa online (ODRs em inglês) e a rotinização da atividade advocatícia podem acentuar a tendência e levar, ao extremo, ao colapso das profissões jurídicas tradicionais.
Haveria uma “desregulação” social crescente, não conseguindo o Estado impor normas jurídicas aos particulares. Essa tendência se agrava com a mencionada virtualidade espacial do mundo contemporâneo, celebrando-se transações nacionais e internacionais em um espaço sem normas que escapa ao controle estatal.
A negociabilidade do direito aumenta ainda mais, contratualizando-se o direito público. Vários setores são apenas regulados pelas normas jurídicas criadas por agências, num processo que leva em consideração o interesse das partes, no geral daquelas mais poderosas, ignorando a busca do bem comum. Muitas vezes ocorrem conflitos entre os padrões regulamentares e o conteúdo expresso de leis, prevalecendo as primeiras em detrimento das segundas.
Cada vez mais parâmetros e padrões criados no ambiente mercantil internacional ou consagrados em países centrais como os Estados Unidos são internacionalizados e reproduzidos em diversas legislações nacionais. Forma-se, assim, um direito homogêneo que preconiza procedimentos empresariais semelhantes nas diversas partes interconectadas do globo.
Os juristas reproduzem os papeis da fase anterior. No caso do jurista de Estado, ainda são mais importantes para os destinos da nação aqueles em cargos fora do Poder Judiciário, delimitando políticas públicas e interferindo na atuação de Bancos Centrais, Agências e Órgãos de Concorrência. Mas, com o enfraquecimento social do Estado, há uma revalorização dos juízes em determinados ramos como o direito a moradia, a medicamentos e a saúde.
Em termos de juristas de mercado, há uma tendência, acompanhando a padronização internacional do direito, de internacionalização da profissão. Alguns escritórios norte-americanos, ingleses e australianos tornaram-se multinacionais do direito. Houve casos de crescimento excessivo que casou a ruína da sociedade, mas outros se mantêm até o momento. Seus advogados assalariados possuem carga de trabalho excessiva, embora recebam bons salários. Surgem filiais e escritórios regionais, esboçando-se um conflito com órgãos de controle profissional nacionais, como a OAB, que tem poder jurídico para impedir a atuação de advogados e escritórios estrangeiros em nosso país, criando uma reserva de mercado contestada.
Também como consequência do enfraquecimento do Estado social surgem Organizações Não-Governamentais que buscam interesses difusos e coletivos como a proteção ao consumidor, ao meio ambiente e a grupos socialmente debilitados. Tais ONGs atraem um “voluntariado jurídico”, ou seja, advogados que se identificam com seus ideais e aceitam trabalhar por um salário muitas vezes abaixo do que receberiam em escritórios renomados. Tais profissionais costumam especializar-se nas áreas de atuação e beneficiam-se de redes de contatos para receberem um posto nessas entidades.
Fonte Primária: CAPELLA, Juan Ramón. Fruta prohibida –una aproximación histórico-teorética al estudio del derecho y del estado. 3ª edição. Madrid: Editorial Trotta, 2001 (cap. cap. 5).