Capitalismo concorrencial, Estado e Direito
10/02/2014Capitalismo contemporâneo, Estado e Direito
12/02/2014Quando a crença na possibilidade de o capitalismo funcionar de modo socialmente eficaz regido exclusivamente pela lei da oferta e da procura desaparece, surgem reivindicações para uma interferência mais constante do Estado na economia e surgem leis protegendo direitos sociais. O equilíbrio entre capitalismo concorrencial, Estado liberal e direito garantidor vem a ruir.
Essa ruína ocorre no “breve século XX” (conforme definição do historiador Eric Hobsbawm), que se iniciaria na Primeira Guerra Mundial (1914) e terminaria com a queda da URSS (1990-91). Esse período historicamente curto (86 anos) é denso em termos de acontecimentos:
- Como dito, o capitalismo deixa de ser concorrencial e o Estado deixa de ser liberal;
- As classes trabalhadoras passam a participar cada vez mais da formação política do Estado, conquistam direitos sociais e até vencem eleições ou fazem revoluções. Até o século XIX, a participação política dos trabalhadores era excepcional, sendo o voto predominantemente censitário;
- As mulheres, embora mais tardiamente, também conquistam direitos políticos e passam a participar de modo ativo de cargos representativos. Algumas leis buscam reconhecer a igualdade de gêneros, tentando amenizar efeitos negativos da discriminação salarial da mulher;
- A Europa perde suas últimas colônias ultramarinas, que se tornam independentes, em especial na África e na Ásia.
Num primeiro momento, que vai de 1914 a 1929, quando quebra a Bolsa de Nova Iorque, alguns fatos são marcantes:
- Os Estados nacionais aprendem a lidar com a chamada “questão social” por meio da cooptação das classes trabalhadoras e do reconhecimento de direitos sociais, até mesmo em nível constitucional (Constituição de Weimar, na Alemanha, e Constituição Mexicana);
- Eclode a Revolução de Outubro, na Rússia, país cujo czar não entende os novos rumos sociais do direito e é deposto, instaurando-se um governo socialista em 1917;
- Na Alemanha ocorrem dois movimentos: consolida-se a República de Weimar, marcada pelo reconhecimento de direitos sociais e uma preocupação de reconstruir o país após a Guerra; no seio dessa República, em meio a uma nostalgia da grandeza perdida, surge o nazismo, fortalecendo-se durante o período;
- Nos Estados Unidos inicia-se o fordismoe o consumo de massas.
O próximo período, que vai de 1930 a 1945, inicia-se com a quebra da bolsa e a perspectiva de que o capitalismo poderia viver sua crise definitiva. O governo norte-americano, contudo, desenvolve uma política econômica eficiente, de inspiração keynesiana, e consegue recuperar, aos poucos, o país e prepará-lo para ser a grande nação do pós-guerra. Do outro lado do globo, a União Soviética (URSS) se industrializa e caminha para ser uma grande potência, bem como o Japão. Na Alemanha, o partido nazista assume o governo e conduz o país para a ruína de nova guerra.
O terceiro período do século vai de 1946 a 1991, com o término da dissolução da URSS. Ocorre a chamada “Guerra Fria” entre os países capitalistas e os ditos comunistas. Há uma ameaça constante de guerra concreta, com o uso de armas nucleares com força para destruir o planeta. O Estado intervencionista, que busca controlar as oscilações econômicas causadas pela lei da oferta e da procura, espalha-se pelo planeta, substituindo o liberal.
Nesse ambiente de economia controlada pelo Estado, nos países centrais a combinação de produção em série e consumo de massa gera um ambiente favorável para a maioria da população, com salários valorizados, empregabilidade tendendo à plenitude e o aumento do consumo da família do empregado, gerando um ambiente psicológico de aparente satisfação.
Não obstante isso, alguns grupos começam a questionar os valores preconizados pela cultura capitalista do consumo e pelo american way of life. A partir dos Estados Unidos, fortalece o movimento negro, exigindo a integração social dessa fatia marginalizada. Também surge o movimento de contracultura, preconizando valores não mercantis e pacifistas. Sobretudo no final da década de 1960, fortalece o movimento estudantil, questionando valores centrais do capitalismo.
Aos poucos, acentuando-se a partir da década de 1980, multiplicam-se as empresas multinacionais e o uso da tecnologia torna-se mais intensivo com a disseminação dos computadores. A globalização acentua-se.
O século XX, como dito, é denso. Todas essas transformações repercutem nas relações sociais e na perspectiva do indivíduo em relação ao mundo, cada vez mais complexo. São constantes as queixas de indivíduos que se sentem “apenas mais um número” na sociedade. Além disso, o ambiente de Guerra Fria gera certo temor generalizado e a sensação de vigilância e espionagem constantes. As pessoas sentem-se observadas em todos os passos de sua vida.
Em termos de produção econômica, o fordismo transforma a economia capitalista e impulsiona a formação dos monopólios. Há uma aumento de produtividade do trabalhador, aplicando-se métodos tayloristas nos ambientes de trabalho. Além disso, o moralismo que recai sobre o trabalhador atinge seu tempo de lazer, que deve ser gasto de forma a não prejudicar o tempo de trabalho e, se possível, até permitir um rendimento sempre superior.
Com o aumento de produtividade do trabalhador, os bens são produzidos em enormes quantidades, tornando-se mais baratos e permitindo eclodir o consumo de massas, em especial das classes trabalhadoras.
Por fim, podemos constatar que o século é marcado por um aumento do Estado e de seu poder. Os gastos militares e com policiamento, inclusive secreto, crescem bastante. Há, pois, uma constante preocupação com a ameaça comunista no ocidente, que pode vir de grupos dentro dos países, ou de uma guerra externa. Também crescem os gastos com publicidade, tornando-se essencial ao representante do Estado demonstrar eficiência na gestão e na prestação de serviços, a fim de obter votos.
A transformação do Estado liberal em Estado intervencionista é um dos fenômenos mais marcantes do século. O capitalismo, ainda que concorrencial, funcionando de acordo com a lei da oferta e da procura, gera as chamadas crises cíclicas e não parece caminhar para o preconizado equilíbrio com justiça social.
De um modo simplista, podemos tecer o seguinte raciocínio: se um produto é escasso, seu preço torna-se elevado. Isso atrai novos produtores, que contratam mais empregados, e o produto, aos poucos, fica abundante. Com a abundância, seu preço cai e a maioria dos produtores vai à falência, gerando desemprego. Se esse fenômeno ocorrer com vários ramos da economia ao mesmo tempo, a crise está instalada, pois a parcela geral de consumidores decresce, afinal de contas o número de desempregados sobe excessivamente. Muitas empresas falidas, muitos desempregados, poucos compradores para os produtos e serviços que ainda restam.
Os mais otimistas afirmam que as crises do capitalismo apenas ocorrem porque se trata de um modelo econômico novo, acreditando no mencionado equilíbrio com seu desenvolvimento. Os mais pessimistas, contudo, consideram as crises capitalistas cíclicas, repetindo-se periodicamente com uma gravidade cada vez maior. Chegaria a crise definitiva, que levaria ao colapso econômico. Muitos, como destacado, acreditam ser essa crise definitiva a crise de 1929.
Durante a década de 1930, um economista, John Maynard Keynes, interpreta as crises capitalistas como crises de excesso de oferta de produtos em face de uma demanda pequena de consumo. A solução seria o Estado desenvolver políticas públicas para a criação de mais demanda, equilibrando artificialmente a oferta e a procura.
Com a teoria econômica keynesiana, temos o fundamento para o Estado tornar-se intervencionista. Diversas medidas poderiam ser adotadas pelo Estado para a criação de demanda:
- Realização de obras públicas, contratando trabalhadores ou empresas, gerando mais salários que podem ser usados no consumo;
- Criação de empresas públicas, gerar empregos e movimentar ramos da economia;
- Redistribuição de rendas e financiamento de serviços por meio da atividade tributária;
- Criação de salários “indiretos” à população por meio do aumento de serviços públicos prestados gratuitamente (educação, saúde, transporte…);
- Adoção de políticas de “pleno emprego”, buscando colocar a maior parte possível da população economicamente ativa em um trabalho remunerado.
Para poder realizar essas novas atividades, o Estado precisa aumentar. Isso ocorre por meio de aumento da carga tributária e de empréstimos financeiros. Mas, se as medidas estatais forem bem executadas, a economia, além de não entrar em crise, crescerá. Esse crescimento econômico gerará uma arrecadação tributária que permitirá ao Estado financiar sua atuação e pagar as eventuais dívidas.
Alguns autores mencionam o “pacto social keynesiano”, caracterizado pela busca do pleno emprego com assistencialismo social, respeito aos fundamentos do capitalismo (propriedade privada dos meios de produção e livre iniciativa), reconhecimento político dos partidos trabalhadores e dos sindicatos e integração das classes trabalhadoras à sociedade (por meio do consumo). Quando ele funciona, resulta numa “espiral de consumo”: trabalhadores bem remunerados comprando produtos massificados a preços em queda.
O Estado intervencionista, inspirado por Keynes, assume novas funções. Economicamente, deve, por exemplo, administrar as crises do capitalismo por meio de políticas econômicas, controlar os preços, criar indústrias em ramos não atrativos para a iniciativa privada, planejar a economia. Assistencialmente, deve cuidar do saneamento básico, da previdência social e da educação básica. Como todo estado, deve policiar a sociedade (preferencialmente de modo preventivo) e deve promover a integração ideológica da população por meio de propaganda.
Em termos organizacionais, o crescimento do Estado se materializa no surgimento de inúmeros outros órgãos além dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), compondo a chamada administração indireta (empresas públicas, fundações, agências…).
Ao contrário do Estado liberal, que deve atuar de modo muito limitado, sempre adstrito à lei, o Poder Legislativo deixa de ser o órgão mais importante, muito embora passe a ser ocupado também pela classe trabalhadora. O Poder Executivo torna-se, por seu lado, central: quando falamos em “governo”, até hoje, pensamos nele. Já o Poder Judiciário enfraquece por duas razões: torna-se caro e lento, abarrotado de processos não julgados, além de não atuar na resolução dos principais conflitos sociais, decorrentes de causas econômicas e sociais que exigem soluções políticas do “governo” (Poder Executivo).
Se durante o Estado liberal, um governo era apoiado pela população apenas por cumprir a lei e interferir pouco na economia, com o Estado intervencionista o padrão de legitimidade muda. De legitimação pela legalidade, torna-se legitimação pela eficiência: a população exige do governo a prestação de serviços públicos e o controle da economia, ainda que, por vezes, sem o respeito rigoroso à lei. Em um país periférico como o nosso, surge o famoso bordão: “rouba mas faz!”.
Para o Estado intervencionista atuar na plenitude de suas novas funções, há a necessidade de um direito que vá além do garantidor: o direito social. Em nome da função social, regula intervenções estatais na propriedade privada e nos contratos (sobretudo de consumo e trabalho). As normas sociais não se pretendem neutras, mas elegem categorias (como “empregado” e “consumidor”) a quem considera hipossuficientes, devendo ser protegidos pelo Estado e amparados pelo Poder Judiciário.
As atividades cada vez mais numerosas do Estado são reguladas por leis também cada vez mais numerosas, causando a “inflação legislativa”. Do ideal liberal de quatro ou cinco códigos regendo toda a vida civil, chegamos a uma realidade de milhares de leis, fragmentadas, confusas, gerando incertezas, impedindo o amplo conhecimento das normas jurídicas. Ocorre o fenômeno da “descodificação do direito”. Não que os Códigos desapareçam, mas deixam, pouco a pouco, de ser centrais. O Estado age conforme as necessidades, criando leis para satisfazê-la, sem conseguir planejar adequadamente a evolução do direito.
Com a importância crescente do Executivo, a lei perde força. De vontade soberana que se impõe independentemente da opinião dos destinatários, torna-se algo parecido com um contrato: o Legislativo negocia a criação da lei com as lideranças políticas e econômicas da sociedade; o Executivo e o Judiciário negociam, do mesmo modo, a interpretação e a aplicação da lei. Surgem termos vagos cujo significado deve ser dado conforme as condições do momento da interpretação.
Com o fordismo, a produção seriada e o consumo de massa, as relações jurídicas também se massificam. Disseminam-se os contratos de adesão, cujas cláusulas são reaproveitadas sem alterações com todos os consumidores. Um problema envolvendo uma dessas cláusulas atinge toda a série de centenas ou milhares de contratantes e requer uma mesma resposta do Poder Judiciário, despreparado para tal situação (ainda continua julgando individualmente os casos). Os danos, assim, tornam-se também massificados.
O jurista de estado mais importante deixa de ser o magistrado. Se as novas funções estatais, fundamentais para o funcionamento do capitalismo, são de gestão e intervenção, não se coadunam com o princípio da inércia processual, que paralisa o Judiciário na descoberta do dano e do conflito. O jurista mais valorizado no estado passa a ser aquele que planeja as ações e intervenções, situando-se em órgãos do Poder Executivo e da administração indireta. O jurista que está no Ministério da Fazenda, no Banco Central, no CADE, para pensarmos no caso brasileiro, é mais importante do que os juízes de primeira e segunda instâncias.
No caso dos juristas de mercado, os advogados ocupam posições estratégicas em empresas, assumindo funções de aconselhamento e de negociação. Há a necessidade de conhecer regras estatais que regulam quase todos os ramos de atividade empresarial, sendo, por vezes, imprescindível a opinião do jurista. Ocorre, também, a especialização do profissional: a complexidade econômica e social chega a um patamar que exige um conhecimento mais e mais profundo de determinados ramos do direito.
O final do período, nas décadas de 1970 e 1980, é marcado pela valorização do profissional do direito e pela explosão no número de faculdades de direito e de advogados, em diversas partes do mundo. Nos Estados Unidos, formam-se os grandes escritórios que cobram valores excessivos pela hora de trabalho, mas são considerados indispensáveis, dado o excesso de regulamentações incidentes sobre os ramos econômicos. O direito parece estar em toda parte, em todos os momentos.
Fonte Primária: CAPELLA, Juan Ramón. Fruta prohibida –una aproximación histórico-teorética al estudio del derecho y del estado. 3ª edição. Madrid: Editorial Trotta, 2001 (cap. cap. 4).