Estado liberal x Estado intervencionista x Estado neoliberal – conceitos articulados
08/02/2014Capitalismo concorrencial, Estado e Direito
10/02/2014Podemos estabelecer uma relação entre a crença ou não na capacidade de o capitalismo progredir para o aperfeiçoamento social regido apenas pela lei da oferta e da procura, o tipo de Estado (liberal, intervencionista, neoliberal) e o modelo de direito que regula esse Estado e a economia.
Quando a sociedade acredita no funcionamento autônomo da economia capitalista, o Estado adquire contornos liberais, devendo nela interferir o mínimo possível. O direito garantidor, ou também chamado de liberal, estabelece de modo claro e preciso os limites para a atuação do Estado, protegendo os direitos subjetivos individuais, a propriedade privada e os contratos.
Em outras palavras, o capitalismo funciona por meio de trocas. Essas trocas são chamadas pelo direito de contratos. Por meio delas, acontecem transferências de propriedades privadas, reconhecidas e protegidas juridicamente. Se as trocas ocorrerem de modo satisfatório (e os contratos, assim, forem respeitados) nada cabe ao Estado fazer, posto que a economia funcionou perfeitamente.
O direito garantidor exige um Poder Judiciário regido pelo princípio da inércia processual. Caso haja descumprimento a um contrato, ou desrespeito à propriedade privada, isso pode significar que as trocas não ocorreram de modo satisfatório, ameaçando a economia. A parte prejudicada pode, se quiser, procurar amparo estatal por meio do Poder Judiciário. O juiz, assim, somente atuará quando provocado, limitando-se a restabelecer a situação anterior, na qual trocas podem ocorrer, ou a exigir o cumprimento do contrato violado.
O direito garantidor cumpre, ainda, importante papel: conferir certeza e segurança para o funcionamento da economia. Se um capitalista não puder conhecer com certeza as normas que regem a atividade econômica empresarial, sobretudo aquelas que estabelecem tributos, talvez não atue em um determinado local ou país. Também pode não se sentir estimulado a abrir uma empresa se não estiver seguro de que as violações aos contratos que celebrar serão punidas.
O direito procura estabelecer claramente quais as regras e sanções aplicáveis a todos os setores da sociedade e de sua economia, permitindo que as pessoas calculem de modo adequado antes de agir. Também estabelece como as violações às regras serão punidas, criando regras processuais, e determinando que o Estado use sua soberania para proteger os contratos e a propriedade privada, conferindo segurança para a sociedade.
Essa estrutura sofre abalos com a transformação do capitalismo concorrencial em monopolista, gerando a crença de que o Estado precisa atuar para corrigir as distorções a que o funcionamento autônomo da economia leva, tornando-se intervencionista. Tais intervenções exigem um direito que vá além do garantidor: o direitosocial.
O pressuposto de que a economia capitalista não corrige as injustiças sociais, mas, às vezes, pode agravá-las, gera a necessidade de que as leis consagrem direitos que dependem da atuação estatal para se efetivarem, pois, como destacado, sem essa atuação, não surgiriam espontaneamente da lei da oferta e da procura. Podemos enumerar alguns desses direitos: educação, moradia, saúde, transporte.
Ao contrário dos direitos liberais apenas garantidos pelo Estado liberal (as liberdades de expressão, de ir e vir, de pensamento, de reunião; a propriedade privada; o cumprimento dos contratos), que só atua depois de provocado pela parte lesada, o direito social não existe sem a prévia atuação do Estado, que agora se torna intervencionista. É preciso que primeiro o Estado construa escolas, para depois se dizer que o direito a educação passou a existir.
Isso gera uma crise decorrente da lógica do Poder Judiciário, marcada pelo citado princípio da inércia processual, mais adequada para a proteção dos direitos liberais. No caso de direitos sociais, o Judiciário não possui instrumentos para atuar, de modo coletivo, em nome de sua efetivação. Um juiz não pode determinar a construção de casas populares ou de escolas ou de hospitais que efetivem o direito à moradia ou o direito à educação ou o direito à saúde, respectivamente.
Nesse contexto cresce, em importância e em tamanho, o Poder Executivo enquanto instância implementadora dos direitos sociais. No Estado intervencionista, sua atuação é essencial. Esse crescimento leva ao aumento da carga tributária e demonstra a ineficiência econômica da atuação estatal, acarretando a crise desse modelo de Estado.
Assim surge o Estado neoliberal que funcionará dentro dos parâmetros estabelecidos pelo direito regulador. Não se recupera a confiança plena na capacidade de o capitalismo resolver problemas sociais, mas se constata que o Estado não possui capacidade de atuar economicamente, devendo abster-se disso.
O direito passa a regular a atividade econômica desenvolvida pelo particular. De modo geral, busca delimitar parâmetros concorrenciais que preservem a lei da oferta e da procura. Em situações específicas, o particular passa a prestar serviços públicos dentro de sua lógica da busca pelo lucro, mas regulado por agências e outras entidades estatais. O direito regulador precisa equilibrar-se entre a necessidade econômica de lucro das empresas e a necessidade de satisfação de direitos sociais dos cidadãos.
Um exemplo é a prestação de serviço de saúde no Brasil. Há uma agência própria (Agência Nacional de Saúde Suplementar) que regula o funcionamento do setor, sobretudo a operação dos planos de saúde, fundamentais para garantir o direito à saúde de parcela significativa da população. Pela lógica reguladora, as empresas de planos de saúde precisam manter um padrão econômico que garanta seu funcionamento, precisando reajustar anualmente os planos; esse reajuste, todavia, não pode inviabilizar o pagamento dos atendidos, que, do contrário, sobrecarregariam ainda mais a rede pública.
Devemos constatar, por fim, que os três tipos de direito (liberal, social e regulador) convivem, nem sempre em harmonia. Frequentemente há descompassos causados pelas lógicas diferentes e pelos modelos diferentes de Estado pressupostos por cada um deles. A atuação do Estado para garantir o direito social à moradia, por exemplo, pode conflitar com a necessidade de garantir a propriedade privada de alguém. Ou, ainda, a atuação reguladora da ANS pode conflitar com a lógica social do Código de Defesa do Consumidor. Tais tensões revelam momentos de grande riqueza para o sociólogo do direito.