Santo Agostinho (354 – 430)
02/09/2011São Tomás de Aquino (1225-1274)
10/09/2011O ordenamento jurídico é um conjunto. Seus elementos principais são as normas jurídicas. Tais elementos encontram-se estruturados conforme determinadas regras. A primeira dessas regras consiste na regra de pertencimento, ou validade: ela especifica quais elementos pertencem ao conjunto.
As reflexões sobre a validade anteriormente formuladas levaram-nos à análise comunicativa da norma jurídica. Uma norma será válida se submetida à verificação formal e material. Formalmente, a validade depende de a pessoa ou o órgão que criou a norma preencher os requisitos para possuir capacidade ou competência reconhecida por outra autoridade superior. Materialmente, a validade depende de o texto da norma não contrariar os textos de outras normas criadas por autoridades superiores.
Uma sentença, por exemplo, será válida caso criada por uma autoridade competente (juiz de direito), conforme um processo, e se seu conteúdo não contrariar o conteúdo de nenhuma norma jurídica superior, criadas por autoridades superiores ao juiz, como as leis (criadas pelo legislador) e a Constituição Federal (criada pela Assembleia Constituinte).
Tal análise revela-nos um primeiro aspecto relativo ao formato do ordenamento: as autoridades que criam as normas jurídicas são de hierarquias diferentes. Existem autoridades superiores e autoridades inferiores. A Assembleia Constituinte é a autoridade mais elevada do nosso ordenamento; as pessoas capazes, que celebram contratos, são as autoridades inferiores, que devem respeito e obediência a todas as demais.
Se as autoridades são de níveis diferentes, suas normas jurídicas também o serão. Assim, as normas criadas pela Assembleia Constituinte serão aquelas mais elevadas, possuindo maior força sobre as outras, que devem seguir suas determinações; as normas criadas pelas pessoas capazes serão as inferiores, devendo observar o conteúdo de todas as demais.
Podemos, portanto, afirmar que o ordenamento é um conjunto de normas jurídicas com um formato escalonado ou hierárquico: há patamares superiores, com as normas mais fortes, e patamares inferiores, com as normas mais fracas. Em linhas gerais, no patamar superior estão as normas constitucionais; abaixo, as normas legais; em seguida, as normas sentenciais; por fim, as normas contratuais.
A validade é um processo contínuo e sucessivo: as normas constitucionais, criadas pela Assembleia Constituinte, autoridade máxima, “validam” as autoridades legislativas (conferem poderes a elas), que criam normas legais; tais normas, por seu lado, “validam” as autoridades judiciais, que criam normas sentenciais, e as autoridades pessoais, que criam normas contratuais.
Resta, todavia, uma questão: qual norma confere poderes à Assembleia Constituinte para que crie as normas constitucionais? Em outras palavras, por que a Constituição Federal é válida?
Segundo Kelsen, haveria uma norma fundamental que daria validade a todas as normas jurídicas e conferiria ao ordenamento um caráter unitário, ou seja, o conjunto seria unificado por essa norma, que eliminaria as contradições entre as demais. Tal norma afirmaria que a Constituição é válida e deve, portanto, ser obedecida.
A norma fundamental, por sua vez, seria a primeira da hierarquia, não precisando de outra norma ou autoridade para validá-la. Kelsen a qualifica como uma pressuposição lógica do direito, sem a qual o mesmo perderia seu sentido. Ir além da norma fundamental significa enfrentar questões filosóficas ou sociológicas que extrapolam seus limites técnicos.
O pensamento jurídico, por assim dizer, começa na Constituição e não “sobe”, buscando os fundamentos da mesma, pois contenta-se com a pressuposição da norma fundamental e seu comando.
Podemos entender a pressuposição lógica da norma fundamental com uma metáfora: se considerarmos que cada norma precisa de outra superior para lhe dar validade e chamarmos essa norma superior de “mãe” da norma inferior, podemos dizer que a norma fundamental é a “mãe de todas as outras mães”. Não faz sentido lógico perguntar se a “mãe de todas as outras mães” tem mãe; caso imaginemos isso, ela jamais poderia ser a “mãe de todas as outras”, pois não seria a mãe de sua própria mãe, que, em relação a ela, é outra mãe.
Saindo da metáfora, a norma fundamental é aquela que valida todas as demais normas; se outra norma a validasse, ela não seria a fundamental. Portanto, ela não precisa, em um sentido lógico, ser validada; basta ser pressuposta pelo pensamento.
Hart, por seu lado, embora concorde com todas as considerações de Kelsen quanto à unificação do ordenamento promovida pela norma fundamental e quanto ao fato de ela não precisar ser validada por nenhuma outra, apenas discorda quanto ao seu caráter. Para ele, a norma fundamental não é um pressuposto lógico, mas existe.
Acima da Constituição haveria uma norma secundária de conhecimento que afirma a sua validade. Essa norma existiria enquanto um dado objetivo: ela é resultado do comportamento dos operadores do direito, que admitem sua existência e não questionam a validade das normas constitucionais.
Partindo do raciocínio de Hart, podemos considerar que a norma fundamental assemelhar-se-ia a uma norma costumeira: sua existência deriva do comportamento das pessoas. Se os operadores do direito continuarem a admitir que a Constituição é válida, isso significará que a norma fundamental permanece em vigor; se deixarem de fundamentar seus pedidos na Constituição, então a norma fundamental se modificou.
Bobbio é outro pensador que também adota a mesma visão de Kelsen quanto ao formato do ordenamento, unificado pela norma fundamental que não precisa ser validada. Essa norma, porém, para o pensador italiano, deriva de um ato de poder: o grupo social que funda a ordem jurídica a impõe com um ato que determina sua obediência. Assim, a norma fundamental significa que o direito criado pelo grupo dominante na sociedade deve ser obedecido.
Para que essa norma seja a fundamental, deve ser posta de modo efetivo pelo poder desse grupo dominante e obedecida, fundando o ordenamento. Caso não seja obedecida, não será a norma fundamental e o poder não terá sido efetivo.
Para os três pensadores acima citados, poderíamos afirmar que o ordenamento possui o formato de uma pirâmide: acima, a norma fundamental, determinando a obediência à Constituição; esta estaria no topo, seguida pelas normas legislativas, numa estrutura que se alarga na base. Lá, encontraríamos as normas jurídicas individuais, derivadas da legislação, como os contratos e as sentenças. Caso um contrato suscite um conflito, poderá ser modificado por uma sentença. Tais normas seriam unificadas pela norma fundamental, que eliminaria os conflitos internos, dando um sentido ao ordenamento.
Tércio Sampaio Ferraz Júnior caracteriza o ordenamento de um modo diferente. Para o autor, o direito é um mecanismo que permite a decisão de conflitos com o mínimo de perturbação social. A decisão desses conflitos de modo uniforme, sem revelar incoerências entre as normas, é apenas uma das possibilidades.
O conjunto de normas jurídicas é um todo coeso, havendo uma estrutura multiforme, capaz de adaptar-se às necessidades sociais e produzir a melhor decisão para o caso, sob o ponto de vista das repercussões sociais dessa decisão. Assim, o direito trabalharia em muitos padrões, cada um deles partindo de uma norma fundamental (ou norma-origem) diferente. Cada padrão tende a ser coerente internamente, eliminando os conflitos entre normas. Todavia, um desses padrões pode conflitar com o outro, sem qualquer obstáculo para o funcionamento do direito como um todo.
A vantagem dessa perspectiva está em poder admitir a existência de incoerências entre normas constitucionais, havendo incompatibilidades insanáveis entre elas. Sob o ponto de vista derivado de Kelsen, essas incompatibilidades precisariam ser eliminadas, pois haveria apenas uma norma fundamental a unificar o sistema.
Concebendo-se o ordenamento como um todo coeso mas não unificado, podemos compreender a formação de subsistemas contraditórios entre si, porém coerentes com suas respectivas fundamentações constitucionais. Por exemplo: podemos extrair da Constituição um ordenamento com normas de proteção ao consumidor de saúde; também podemos extrair outro ordenamento com normas de proteção às operadoras de planos de saúde, passando pelas agências reguladoras. São subsistemas conflitantes entre si, mas que serão utilizados como parâmetro para a produção de decisões judiciais conforme as conveniências jurídicas e seu índice de perturbação social.
Conforme Tércio, o direito possuiria regras de calibração, ou seja, regras cuja função é permitir a mudança de padrão do ordenamento, para que possa continuar atendendo às demandas sociais. Caso o funcionamento do direito dentro de uma hierarquia normativa não levasse a uma decisão capaz de impedir o conflito de causar uma perturbação social maior, então a regra de calibração atuaria, modificando o padrão normativo em que a decisão seria produzida.
Os padrões usuais de funcionamento do direito respeitam a legalidade, fundamentando-se em artigos da Constituição Federal. Todas as normas adotadas são consideradas válidas dentro de suas “pirâmides”. A norma de uma “pirâmide”, todavia, poderia ser considerada inválida caso estivesse noutra. Uma norma de proteção à operadora de planos de saúde é válida no seu ordenamento, mas poderia ser considerada inválida sob o ponto de vista do ordenamento de proteção ao consumidor de saúde.
Quando falamos em formato do ordenamento jurídico, concluindo, costumamos pensar numa única “pirâmide”, adotando a perspectiva unitária de Kelsen. Se ampliarmos nosso enfoque, contudo, veremos que tal perspectiva não se sustenta perante a complexidade do direito contemporâneo. Contradições entre normas constitucionais inviabilizam a ideia de “pirâmide” única. Precisamos admitir que existem vários padrões de funcionamento convivendo no seio do mesmo direito.
Referências:
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão e Dominação. 6ª edição. São Paulo: Atlas, 2008. (4.3.1.4)