Rompimento judaico-cristão
02/09/2011Formato do ordenamento jurídico
05/09/2011O rompimento causado pela crença judaico-cristã levará à formação de um novo período na história da filosofia: a Patrística.
Durante os séculos I ao IX, a influência dos primeiros padres cristãos na cultura Ocidental foi das mais intensas. Inicialmente, lutam para disseminar o cristianismo enquanto religião, explicando seus dogmas fundamentais à população em geral. Nesse momento, muitas vezes, recorrem à filosofia, adaptando-a à fé religiosa, como forma de converter os pagãos, acostumados às reflexões racionais. O conjunto de pensamentos desses padres, um tanto heterogêneo, recebe o nome genérico de Filosofia Patrística.
O primeiro período dessa filosofia é marcado, sobretudo, pela consolidação do cristianismo. Trata-se de um momento de combate. Há a necessidade de lutar contra a clandestinidade inicial da crença, num momento de afirmação religiosa. Há também a necessidade de ampliar o número de fieis.
Alguns padres, sobretudo os romanos, simplesmente desprezam a cultura grega pré-cristã, qualificando-a como pagã. Outros, todavia, formados nessa cultura, sobretudo aqueles em Alexandria, já empregam os primeiros esforços para adaptar o pensamento clássico ao cristianismo.
A partir do século IV, o cristianismo deixa de ser clandestino no Império Romano, sendo reconhecido e tolerado, e, em seguida, tornando-se a religião oficial de Roma. As lutas do período anterior renderam frutos e a filosofia patrística vive o momento de apogeu. O grande nome do período é Santo Agostinho (354-430).
Nascido em Tagasta, na Numídia (atual Argélia), sua vida divide-se em dois períodos: o período de sua formação, ocorrido antes da conversão, e o período de sua conversão ao cristianismo e da produção de suas obras filosóficas.
Após educar-se em colégios pagãos, não obstante o fervor cristão de Santa Mônica, sua mãe, Agostinho vai a Cartago, onde se envolve em aventuras juvenis e tem um filho. Ingressa em uma seita maniqueísta e torna-se professor de retórica em Tagasta e, depois, em Cartago.
Depois de passar, como professor, por Roma e Milão, e de sofrer desilusões espirituais com o maniqueísmo, converte-se ao cristianismo católico, aceitando a verdade divinamente revelada e a sabedoria da Igreja. Mas essa conversão não o satisfaz por completo: há uma lacuna filosófica que somente será preenchida com a descoberta de Platão, por meio de filósofos neoplatônicos, como Plotino, Porfírio, Jâmblico e Apuleio. Realiza, então, uma síntese do pensamento platônico com o pensamento cristão, que reinará absoluta nas concepções católicas por quase mil anos.
Em 386 ouve o “chamado de Deus”, deixa-se batizar, vende seu patrimônio e volta ao norte da África, onde abre um mosteiro a fim de aprofundar suas especulações e entregar-se, por inteiro, à fé. Torna-se padre, em 391, e bispo, em 395.
Segundo Agostinho, Deus é a causa perfeita, explicativa de todo o ser em suas diversas naturezas e ações. Suas demonstrações levam à existência divina e a suas características básicas, como unidade, imutabilidade e eternidade.
Um dos problemas que atormenta Agostinho é o da existência do mal. Como justificar que Deus, a suprema bondade e perfeição, tenha criado o mal? A justificativa agostiniana é bastante interessante: não existiria o mal em si, que nunca fora criado propriamente.
Quando Deus cria algo, esse novo ser passa a ter existência autônoma em relação a Ele, afastando-se de Sua perfeição. Se Deus criasse coisas que compartilham, na plenitude, de sua perfeição, então criaria novos deuses, o que, em termos lógicos, seria impossível, posto Deus ser único. Assim, toda a obra de Deus padece de um grau de imperfeição.
Mal = grau de imperfeição das coisas
Ora, Agostinho reinterpreta o mal, não como criação em si, mas como ausência de plenitude da bondade. Deus é a bondade plena; as coisas criadas, afastam-se dessa plenitude, tornando-se imperfeitas em bondade e, logo, adquirindo a “maldade”.
Com essa explicação, Agostinho refuta a tese, também, de que Deus teria dado ao ser humano a opção de escolher entre o “bem” e o “mal”, como coisas equivalentes. Afirma duvidar que fosse desígnio divino dotar as pessoas da capacidade plena de fazer coisas ruins, disseminando, assim, a maldade.
Na verdade, os seres humanos estariam no nível mais distante da criação divina, situando-se entre os seres que padecem do maior grau de imperfeição. Com isso, tornam-se incapazes de agir de modo plenamente correto ou de fazer o bem movidos pela razão. Dada a imperfeição humana, tornam-se suscetíveis de praticar o mal.
Seres humanos praticam o mal por serem imperfeitos, incapazes de agir apenas racionalmente
O pensamento agostiniano desvaloriza, de modo excessivo, o ser humano e sua razão. Visto como um ser imperfeito, a salvação independe de seus atos racionais. Deus escolhe previamente aqueles que vai salvar, no instante da criação, pois é onisciente, e sabe quais os caminhos que serão seguidos por cada ser humano. Mas, da perspectiva de cada um, a salvação é obtida no cotidiano. Então, as pessoas devem manifestar fé em seus atos, demonstrando, em vida, que estão em contato com Deus e podem ser salvas.
A ética, assim, consiste na busca da fé como critério que norteia a ação humana, pois a razão não demonstra que a pessoa está em contato com Deus. Em concreto, isso significa respeitar as autoridades que representam a vontade divina, como a Igreja, independentemente do valor racional de suas ordens, mas em decorrência da fé.
Essa perspectiva está na raiz do medievo, das imagens negativas e escuras da vida e na perspectiva de que o ser humano é falho e limitado. Há uma inegável matriz platônica: Deus é a ideia máxima (plena, perfeita, eterna) e os objetos correspondem ao concreto real (limitado, imperfeito, mortal).
A política e o direito
Politicamente, Agostinho estabelece uma distinção marcante: a Cidade dos Homens e a Cidade de Deus. A primeira é real, construída por homens, marcada por instituições imperfeitas, incompletas e injustas. Seus moradores são pessoas pecadoras, viciosas, que amam mais a si do que a Deus. Os atos coletivos, como as leis e os julgamentos, padecem das mesmas imperfeições humanas, sendo injustos e não levando ao bem comum.
Cidade dos Homens é imperfeita e injusta
A Cidade de Deus é a obra do Criador mais próxima de si. Nela estão os santos e as pessoas salvas, que, durante suas vidas, amaram mais Deus do que a si. As instituições possuem o grau máximo de perfeição, dada a proximidade do Criador, sendo suas leis justas e imutáveis.
Algumas questões surgem dessas concepções. As pessoas que vivem em meio às calamidades da Cidade dos Homens deveriam fazer algo? Sabendo que a imperfeição da humanidade as impede de fazer coisas realmente boas, haveria a necessidade de uma ação política?
Agostinho considera a fé fundamental na vida humana. Somente aqueles que norteiam seus atos pela fé podem ser salvos. Assim, a resposta às questões acima passa por ela.
Ainda que os humanos sejam incapazes e seus atos sempre imperfeitos, Deus escolheria alguns para governar. O objetivo dessa escolha é garantir um mínimo de segurança para os escolhidos poderem viver com fé. Desse modo, caberia a todos respeitar integralmente essa autoridade que, claro, passaria pela Igreja Católica.
Governantes devem garantir segurança para as pessoas poderem exercer a fé
Aqueles escolhidos por Deus para exerce o poder político deveriam elaborar leis inspirados naquelas existentes na Cidade de Deus. O modelo de legislação e também de justiça torna-se transcendente, devendo ser encontrado pela fé. Mas, dada a falibilidade humana, essas leis sempre seriam imperfeitas, por maior que fosse o esforço dessas autoridades. Mesmo nesse caso, em nome da segurança, as pessoas deveriam curvar-se, pois não podem compreender e julgar a escolha inicial, de Deus. Somente uma ampla obediência à autoridade traria o grau de segurança necessário para uma vida repleta de fé na Cidade dos Homens.
Leis feitas pelos humanos devem copiar as leis perfeitas e justas da Cidade de Deus
As leis humanas, temporais, devem tratar de questões ligadas à concretização da justiça nas imperfeitas instituições da Cidade dos Homens. As leis divinas, naturais ou eternas, tratam das almas que vivem na Cidade de Deus.
Independentemente das críticas que podem ser apresentadas, sob o ponto de vista racional, à síntese empreendida por Agostinho, não se pode negar méritos a seu esforço. Mesmo se admitindo que não explica os motivos pelos quais Deus, onipotente, cria coisas imperfeitas, há de se convir que sua filosofia torna-se um sistema coerente, ainda que com o predomínio da fé. Também devemos ressaltar o fôlego que adquire, sobrevivendo por muitos séculos e inspirando a consolidação da Igreja Católica e da Filosofia Medieval.
Referências: