Direito Público x Privado – histórico e critérios
20/04/2011Direito Público x Privado – interpenetração
22/04/2011A divisão do conjunto de normas jurídicas a que chamamos Direito em dois grandes ramos, o público e oprivado, é importante sob dois pontos de vista: possibilita uma organização sistemática dessas normas e facilita seu manejo pelo jurista.
Cada uma dessas grandes divisões é constituída por normas que limitam as possibilidades de um fato a partir de princípios diferentes. As normas que compõem o ramo direito público, assim, são elaboradas e interpretadas conforme regras gerais (princípios) diversas daquelas utilizadas nesse processo pelas normas de direito privado.
Sem esgotarmos o assunto, escolhemos dois pares de princípios que regem cada um dos ramos e levam a questões que envolvem dois dos ideais mais elevados de nossa era: a igualdade e a liberdade.
Se adotarmos o critério subjetivo, podemos afirmar que o direito público rege relações em que o Estado é parte e o direito privado rege relações em que apenas particulares são partes (ressalvemos o caso do art. 173 da Constituição Federal, no qual o Estado age praticando atividade econômica e é regido pelo direito privado).
Pensando nas relações de direito público, as normas jurídicas que compõem esse ramo estão sujeitas ao princípio da autoridade pública; no caso das relações de direito privado, as normas jurídicas estão sujeitas ao princípio da igualdade das partes. Assim, se verificarmos as relações sociais regidas pelas normas, constatamos que o princípio da igualdade não é universal no direito.
Afirmamos que o princípio da autoridade pública sujeita as normas de direito público. Isso se deve ao fato de o Estado, parte necessária nessas relações sociais, ser dotado de autoridade perante os particulares. Essa autoridade pode ser considerada um dado cultural, pois os particulares devem pressupor sua existência.
A autoridade estatal se manifesta no poder de exigir, UNILATERALMENTE, dos particulares, comportamentos. O Estado pode impor normas jurídicas aos particulares, como as leis e os regulamentos; pode impor multas em caso de infrações de trânsito ou de outros gêneros; pode proibir determinados atos. Essa autoridade deriva da Constituição, que transfere poder público ao ente estatal e delimita seu exercício. Essa imposição é unilateral, pois independe da concordância do particular.
No caso das relações de direito privado, prevalece o princípio da igualdade entre os particulares. Usando a mesma linha de raciocínio, constatamos que um particular não pode, sob o prisma do direito, impor UNILATERALMENTE comportamentos a outro particular. Daí a constatação de que, juridicamente, são iguais.
Por mais que uma empresa multinacional seja mais rica do que um indivíduo, não pode obrigá-lo, juridicamente, a comprar seus produtos. Por mais que um empregador seja economicamente mais forte do que seu empregado, não pode obrigá-lo a trabalhar em seu estabelecimento para sempre.
No direito privado, uma parte só pode impor comportamentos a outra se houver um fundamento contratual (BILATERALMENTE, portanto). Nesse sentido, um consumidor e um fornecedor que celebram um contrato de prestação de serviços poderão exigir comportamentos recíprocos em virtude da execução desse contrato; um empregador pode exercer seu poder disciplinar em relação ao empregado em virtude desse mesmo fundamento contratual. Nesses casos, a autoridade deriva de um “construído cultural” (o contrato) e não de um “dado cultural” (a Constituição).
Cumpre ressaltar uma possível exceção: a autoridade familiar, exercida pelos pais em relação aos filhos. Nesse caso, embora a relação seja de direito privado pelo critério subjetivo, é inegável que, durante a menoridade dos filhos, os pais exercem autoridade sobre eles. Não se trata de um fundamento contratual, mas derivado da própria legislação. Porém, quando os filhos atingem a maioridade e adquirem independência econômica, cessa a autoridade.
Dissemos acima que, sob o ponto de vista da relação social, o princípio da igualdade não é universal do direito, não se aplicando, portanto, ao direito público. Precisamos fazer um reparo: existe, sim, o princípio da igualdade no direito público, mas se trata da igualdade de tratamento.
O Estado, portador de autoridade pública, deve tratar os particulares de modo a consagrar a ideia de igualdade. Isso ocorre sempre que os particulares iguais entre si são tratados de modo igual e aqueles desiguais entre si são tratados de modo desigual, nos limites dessa desigualdade. Em outras palavras, o Estado deve tratar os iguais de modo igual e os desiguais de modo desigual (buscando equilibrar a relação).
Muitas vezes a igualdade é pensada como na impossibilidade de diferenciarmos as pessoas. Não é isso. A igualdade de tratamento consiste justamente na necessidade de diferenciarmos as pessoas que são diferentes e não diferenciarmos aquelas que já são iguais. A diferenciação exige um critério racional, ou seja, justificável perante o direito e a sociedade.
Podemos exemplificar citando uma norma jurídica que proíba idosos de participarem de um concurso público para a função de soldado do Exército de um país. Neste caso, a diferenciação entre idosos e não idosos é justificável.
Também podemos justificar a atuação estatal no sentido de proteger determinados particulares em suas relações com outros particulares, criando normas de ordem pública em ramos do direito privado, como é o caso do consumidor, do empregado e da criança que são beneficiados por normas do CDC, da CLT e do ECA.
Não seria justificável um tratamento desigual dado a pessoas em situação de igualdade. Imaginemos um concurso público para contratação de docente a Universidade Federal que proíba as mulheres de participarem da seleção. Qual o fundamento para diferenciarmos, no caso, homens de mulheres? Não seria aceito pelo direito.
O segundo par de princípios de que trataremos liga-se ao princípio da legalidade. O direito público é regido pela legalidade estrita; o direito privado, pela legalidade ampla.
O princípio da legalidade estrita estabelece que o Estado somente pode praticar atos previamente previstos na legislação. Em outras palavras, o Estado somente pode fazer o que é, de modo expresso, obrigatório ou permitido. Não podemos falar de liberdade, portanto, no direito público, pois os agentes estatais não podem agir de modo criativo ou inovador, fazendo aquilo que não estava previsto na legislação.
O princípio da legalidade ampla, por seu turno, estabelece que o particular deve fazer tudo o que é, de modo expresso, obrigatório e não pode fazer tudo o que é, também de modo expresso, proibido por lei. Mas há um acréscimo fundamental: ao particular é permitido todo comportamento que não estiver, de modo expresso, proibido pela lei. Surge, portanto, apenas no direito privado a noção de liberdade, derivada dessa permissão geral conferida aos particulares.
Em resumo, podemos dizer que a legalidade estrita, que rege as normas de direito público, afirma que só aquilo expressamente previsto em lei é permitido, e a legalidade ampla, que rege o direito privado, afirma que tudo que não é expressamente proibido é permitido.
A situação é tão limitante no caso do comportamento do Estado, que não apenas o conteúdo de seus atos deve estar previsto em lei, mas também a forma como eles devem ser praticados. Em virtude do princípio da legalidade estrita, os atos estatais tornam-se típicos (descritos pela lei) e sua prática exige o respeito a procedimentos específicos.
Isso significa que o direito público sujeita os atos estatais a um devido processo, que especifica a forma como deve ser praticado. Uma nova lei somente pode ser criada pelos deputados se respeitarem os procedimentos previstos no processo legislativo; uma sentença judicial somente pode ser proferida se o juiz respeitar os procedimentos previstos nos códigos processuais; uma ato administrativo do Estado somente pode ser praticado se o agente respeitar o procedimento administrativo que o norteia.
No caso do direito privado, a liberdade aplica-se não apenas ao conteúdo dos atos particulares, mas também a sua forma. Como regra, as pessoas podem celebrar contratos verbais ou escritos. Podem praticar atos de diversas formas, livremente escolhidas pelo agente. Apenas excepcionalmente há a exigência de formalidades, como a escrituração pública de certos atos ou a prática de medidas solenes em outros.
Podemos resumir este tópico concluindo que a diferenciação entre direito público e privado é de vital importância, pois permite tratar casos concretos a partir dos princípios corretos que norteiam o funcionamento de cada um dos ramos. O direito público é regido pelos princípios da autoridade pública, da igualdade de tratamento, da legalidade estrita e do devido processo; o direito privado é regido pelos princípios da igualdade entre as partes e da legalidade ampla.
Referência:
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público.