O direito na primeira metade do século XX: totalitarismo e colapso do positivismo liberal
22/08/2023Neoliberalismo e crise do Direito Social
25/08/20231. As crises política, jurídica e econômica
a. Crise Política:
O período anterior à Segunda Guerra Mundial foi marcado por intensas turbulências políticas. A emergência do totalitarismo nos países europeus, notadamente o Fascismo na Itália e o Nazismo na Alemanha, desafiou as normas democráticas prevalecentes e conduziu o mundo a um conflito global sem precedentes. Esses regimes, embora caracterizados por sua natureza autoritária, também atraíram amplo apoio popular em suas respectivas nações devido à sua promessa de restaurar a ordem, a dignidade nacional e a prosperidade econômica.
As políticas expansionistas e militaristas destes regimes, aliadas a uma rede complexa de alianças e hostilidades entre as principais potências, culminaram na Segunda Guerra Mundial. Esta guerra não só devastou vastas regiões da Europa e da Ásia, mas também semeou a desconfiança entre as nações, levando a uma reestruturação global do poder político.
b. Crise Jurídica:
O totalitarismo e a Segunda Guerra Mundial também precipitaram uma crise no campo jurídico. A crença no positivismo liberal – a ideia de que o direito é puramente um produto da vontade legislativa e que a justiça pode ser alcançada simplesmente através da aplicação rigorosa da lei – foi profundamente desafiada.
A lei, em muitos casos, foi usada como instrumento de opressão, especialmente nos regimes totalitários. As leis racistas e anti-semitas da Alemanha nazista são exemplos notórios, assim como as leis fascistas na Itália que suprimiram as liberdades civis. Além disso, o problema dos apátridas – indivíduos que não possuíam nacionalidade e, portanto, nenhum direito legal em nenhum estado – tornou-se mais agudo devido às deslocações em massa causadas pela guerra.
c. Crise Econômica:
A Grande Depressão dos anos 1930 havia exposto as falhas inerentes do capitalismo laissez-faire. As economias nacionais entraram em colapso, o desemprego disparou e a desigualdade se acentuou. Embora a guerra tenha impulsionado a produção em muitos países, o período do entreguerras e os primeiros anos do pós-guerra foram marcados por instabilidade e recessão.
Além disso, o sistema econômico global enfrentou o risco de um colapso completo do capitalismo concorrencial. As economias de guerra e as políticas de austeridade implementadas em muitos países para financiar o esforço de guerra aprofundaram a recessão econômica.
Conclusão:
O período entre guerras, caracterizado por crises políticas, jurídicas e econômicas, foi fundamental para moldar o cenário pós-1945. Os desafios enfrentados durante esta época resultariam em mudanças significativas no mundo jurídico, político e econômico, lançando as bases para os “trinta anos gloriosos” que se seguiriam.
2. Criação da ONU
Origens e Contexto:
Em resposta às crises devastadoras da primeira metade do século XX, especialmente a Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional percebeu a necessidade urgente de um novo mecanismo que promovesse a paz e prevenisse conflitos futuros. A Liga das Nações, criada após a Primeira Guerra Mundial, tinha falhado em seu objetivo de manter a paz global, e havia uma pressão crescente por uma organização mais eficaz e representativa.
Busca pela superação das crises jurídica e política:
A Organização das Nações Unidas (ONU) foi estabelecida em 1945 com a finalidade principal de manter a paz e a segurança internacionais. A Carta da ONU, assinada em São Francisco, delineou os princípios fundamentais e a estrutura da organização. A Carta enfatiza a igualdade soberana dos estados membros, a proibição do uso da força em relações internacionais (exceto em autodefesa ou quando autorizado pelo Conselho de Segurança) e o princípio da solução pacífica de disputas.
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:
A Assembleia Geral da ONU adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em 1948, um marco na história dos direitos humanos. Esta declaração estabeleceu um padrão comum para todos os povos e nações e se tornou a base para a proteção e promoção dos direitos humanos em todo o mundo. Artigos como o direito à vida, liberdade e segurança pessoal; o direito a um julgamento justo; e o direito à educação estão consagrados na DUDH.
Resgate do jusnaturalismo:
Um aspecto fundamental da criação da ONU e da DUDH foi o resgate do jusnaturalismo, a ideia de que existem direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de legislações nacionais. Este retorno aos direitos naturais foi uma resposta direta às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, especialmente pelo regime nazista. O jusnaturalismo, por meio da DUDH, buscava limitar a capacidade dos Estados de violar os direitos fundamentais de seus cidadãos e garantir que os princípios universais dos direitos humanos fossem respeitados.
Conclusão:
A criação da ONU e a subsequente adoção da DUDH representaram um marco no direito internacional, estabelecendo um novo padrão para a proteção dos direitos humanos. Ambos refletiram o desejo da comunidade internacional de prevenir futuros conflitos e garantir que os horrores do passado não se repetissem. Através de sua Carta e da DUDH, a ONU procurou criar um mundo mais justo e pacífico, colocando a dignidade humana no centro de seus esforços.
3. Estado Social e Intervencionista
Introdução ao Contexto Econômico-Político:
Com a devastação trazida pelas guerras mundiais e a crise econômica mundial, a visão clássica do Estado como mero observador dos processos econômicos foi desafiada. Surgiu então a necessidade de um Estado mais participativo e ativo na regulação e estabilização da economia.
John Maynard Keynes e a Intervenção Estatal:
John Maynard Keynes, economista britânico, desempenhou um papel crucial na transformação da compreensão econômica no século XX. Em contraste com a crença anterior de que os mercados se autorregulariam, Keynes argumentou que, em tempos de recessão, o Estado deveria intervir para estabilizar a economia.
- Realizar gastos públicos: Segundo Keynes, em tempos de recessão econômica, o governo deveria investir em grandes projetos públicos para gerar empregos e estimular a demanda. Isso contrastava com a crença anterior de que o governo deveria cortar gastos durante os tempos difíceis.
- Criar ambiente de segurança para o consumidor: Para Keynes, a confiança do consumidor era fundamental para a recuperação econômica. Se as pessoas acreditassem que o futuro seria próspero, elas gastariam mais, levando a um aumento na demanda e, por sua vez, incentivando as empresas a produzir mais e a contratar mais trabalhadores.
A Ascensão do Estado Social:
O Estado Social emerge como uma resposta à crescente desigualdade e aos problemas sociais evidenciados pelas crises. O foco se desloca do mero desenvolvimento econômico para a garantia do bem-estar da população.
- Garantir o bem-estar social: A ideia central do Estado Social era que o governo deveria desempenhar um papel ativo na garantia do bem-estar de seus cidadãos. Isso incluía a provisão de serviços como saúde, educação e segurança social.
- Implementação de direitos sociais: O Estado não era mais visto apenas como garantidor de direitos civis e políticos, mas também de direitos sociais. A garantia de direitos como trabalho digno, saúde e educação se tornou central.
- Proteção ao trabalhador: Com o surgimento das indústrias e a urbanização acelerada, os direitos dos trabalhadores foram muitas vezes negligenciados. O Estado Social visa proteger os trabalhadores contra exploração, garantindo salários justos, condições de trabalho seguras e direitos como férias pagas e licença-maternidade.
Exemplos Notáveis:
- New Deal (EUA): Implementado pelo presidente Franklin D. Roosevelt durante a Grande Depressão, o New Deal foi uma série de programas e projetos destinados a proporcionar alívio econômico, recuperação e reforma. Incluía tudo, desde a construção de infraestrutura até a implementação de regulações financeiras.
- Plano Beveridge (Inglaterra): Proposto por William Beveridge em 1942, este plano visava criar um sistema de bem-estar social no Reino Unido. Foi fundamental para a criação do Serviço Nacional de Saúde (NHS) e do moderno sistema de bem-estar britânico.
Conclusão:
O período entre as guerras e o pós-guerra marcou uma profunda transformação na relação entre o Estado e a economia. Reconhecendo as falhas dos mercados e o sofrimento humano causado pelas crises econômicas, os governos em todo o mundo começaram a adotar políticas mais intervencionistas e focadas no bem-estar social, marcando a ascensão do Estado Social e Intervencionista.
4. Resgate e alargamento do positivismo jurídico
Com o cenário de mudanças políticas, sociais e econômicas após a Segunda Guerra Mundial, o direito passou por uma reavaliação profunda em sua natureza, fundamentos e metodologia. O positivismo jurídico, que dominou grande parte do pensamento jurídico até o início do século XX, viu-se desafiado pelas atrocidades cometidas em nome da “lei” durante a era dos totalitarismos. Entretanto, ao invés de ser completamente abandonado, o positivismo jurídico foi resgatado e ampliado, abrindo caminho para uma abordagem mais rica e multifacetada do direito.
1. “Tópica e Jurisprudência”, de Theodor Viehweg (1954)
- Resumo: Viehweg abordou a tópica, um antigo método retórico, como uma alternativa à estrutura dedutiva do pensamento jurídico positivista. Segundo ele, o direito frequentemente lida com questões abertas, para as quais a tópica oferece uma abordagem mais flexível e orientada para o problema.
2. “Teoria Geral da Interpretação”, de Emílio Betti (1955)
- Resumo: Betti defendeu uma abordagem hermenêutica para a interpretação legal, centrada na reconstrução do significado original da lei. Ele se opunha à ideia de que a interpretação poderia criar novos significados, enfatizando a fidelidade ao texto legal.
3. “Nova Retórica – Tratado da Argumentação”, de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (1958)
- Resumo: A obra explora a importância da retórica e da argumentação na lógica jurídica, em contraste com a estrita aplicação dedutiva da lei. O livro sugere que os juristas utilizem técnicas retóricas para persuadir e justificar suas decisões.
4. “Os usos do argumento”, de Stephen Toulmin (1958)
- Resumo: Toulmin apresenta uma abordagem prática da argumentação, propondo um modelo para analisar a estrutura dos argumentos. Ele introduz conceitos como reivindicação, suporte e garantia para entender melhor como os argumentos funcionam em diferentes contextos, incluindo o jurídico.
5. “Sobre Direito e Justiça”, de Alf Ross (1958)
- Resumo: Ross discute a natureza do direito e da justiça sob a perspectiva do positivismo lógico. Ele explora as linguagens normativa e descritiva no contexto jurídico, tentando entender como as afirmações legais podem ser verificadas e justificadas.
6. “Teoria da Norma Jurídica” e “Teoria do Ordenamento Jurídico”, de Norberto Bobbio (1958 e 1960, respectivamente)
- Resumo: Bobbio, um dos maiores juristas do século XX, explorou a estrutura e hierarquia das normas jurídicas e como elas se relacionam no ordenamento jurídico. Ele se aprofundou nas questões de coerência, completude e contradição dentro do sistema jurídico.
7. “Teoria Pura do Direito”, de Hans Kelsen (2ª edição de 1960)
- Resumo: Na obra seminal de Kelsen, ele defende uma “pureza” do estudo jurídico, separando-o de influências externas como a moral, a política e a sociologia. Kelsen introduz a ideia de uma norma fundamental (“Grundnorm”) como a base de todo o sistema jurídico.
8. “O Conceito de Direito”, de H.L.A. Hart (1961)
- Resumo: Hart explora a natureza do direito e sua relação com a moralidade. Ele introduz a distinção entre as “regras primárias” (que governam o comportamento) e as “regras secundárias” (que governam a criação, modificação e aplicação das regras primárias), oferecendo uma visão sofisticada do funcionamento do direito.
Conclusão:
O período pós-guerra viu uma revitalização e expansão do positivismo jurídico. Os juristas, ao reconhecerem as limitações do positivismo estrito, começaram a integrar outros métodos e perspectivas, resultando em uma abordagem mais rica e multidimensional do direito. As obras deste período refletem essa evolução, mostrando a complexidade e profundidade do pensamento jurídico moderno.
5. Os trinta anos gloriosos
Os “Trinta Anos Gloriosos”, também referidos como “Les Trente Glorieuses” em francês, descrevem o período de crescimento econômico sem precedentes que ocorreu na maioria dos países industrializados após a Segunda Guerra Mundial, aproximadamente de 1945 a 1975. Esta era é marcada por uma combinação de expansão econômica, desenvolvimentos tecnológicos, aumento da produtividade e avanços sociais.
Características centrais desse período incluem:
- Crescimento Econômico Robusto: Durante os trinta anos gloriosos, a economia mundial experimentou taxas de crescimento consistentemente elevadas. Isso foi possível graças à reconstrução após a guerra, à demanda reprimida, às inovações tecnológicas e a políticas econômicas focadas no pleno emprego.
- Fordismo e Produção em Massa: O modelo de produção fordista, caracterizado por linhas de montagem e produção em massa, dominou a manufatura. Este sistema não apenas transformou a produção, mas também as relações de trabalho, com sindicatos fortes negociando melhores salários e condições para os trabalhadores.
- Bem-Estar Social: A expansão econômica permitiu o financiamento de generosos sistemas de bem-estar social em muitos países. Estes sistemas, muitas vezes estabelecidos em resposta aos traumas da guerra e da depressão econômica dos anos 30, visavam garantir saúde, educação e segurança econômica para todos.
- Globalização inicial: Os Trinta Anos Gloriosos também testemunharam os estágios iniciais da globalização, com um aumento no comércio internacional, investimentos estrangeiros e a fundação de organizações globais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
Exemplos Notáveis:
- Reconstrução Europeia: O Plano Marshall, financiado pelos EUA, desempenhou um papel crucial na reconstrução da Europa Ocidental, não apenas reedificando infraestruturas destruídas, mas também estabelecendo as bases para a integração europeia.
- Boom Japonês: O Japão, devastado pela guerra, experimentou um crescimento econômico milagroso. Empresas como Toyota, Sony e Honda começaram a dominar os mercados globais.
- Desenvolvimento Tecnológico: Este período viu a invenção e popularização da televisão, dos computadores, da aviação comercial e da energia nuclear.
- Cultura e Sociedade: Foi uma era de otimismo e mudança cultural. Movimentos pelos direitos civis, a revolução sexual e o rock and roll são apenas algumas das muitas tendências culturais que surgiram ou ganharam impulso durante este período.
Conclusão:
Os Trinta Anos Gloriosos representam um período sem precedentes na história moderna, quando a prosperidade econômica e os avanços sociais caminharam de mãos dadas. A combinação de políticas estatais inteligentes, inovação industrial e uma ordem global emergente criou um ambiente em que muitas nações floresceram. No entanto, o final desse período, por volta de 1975, foi marcado por crises econômicas, que desafiariam muitas das suposições que sustentaram esse boom e estabeleceriam o palco para as décadas subsequentes.
Sugestões:
- A reconstrução dos direitos humanos: Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt
- História da filosofia do direito
- Introdução Histórica ao Direito
- História da Civilização Ocidental – v. 2
- A Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um Milênio
- Sistema e Estrutura no Direito
- Filosofia do Direito