Validade – reflexões

Dizer que alguma coisa tem validade significa dizer que essa coisa tem valor. Ora, valor é uma qualidade que exige comparação: uma coisa somente pode ter valor em relação a outra ou a um critério.

Quando afirmamos que um computador é valioso (tem valor), precisamos especificar em relação a que nos referimos. Um computador pode ter valor em um sentido econômico, comparativamente a outras mercadorias, especialmente a moeda, possuindo, assim, um preço elevado. Mas pode ser valioso em outros sentidos, como sua utilidade ou sua ludicidade.

Afirmar que uma norma é válida, do mesmo modo, corresponde a dizer que ela tem validade ou, simplesmente, valor. Devemos, então, nos perguntar: valor em relação a que?

Se o nosso objeto de estudo é o Direito, nossa resposta à questão acima só pode ser direcionada a ele: uma norma tem validade em relação ao Direito. Pois bem, se o Direito contemporâneo estrutura-se como um ordenamento, ou conjunto de normas jurídicas, podemos concluir que uma norma será válida, juridicamente, caso pertença a esse conjunto. Será, por outro lado, inválida, caso não pertença a ele.

A questão, assim, modifica-se um pouco: para que uma norma tenha valor perante o Direito, deve pertencer ao conjunto de normas jurídicas chamado ordenamento. Pois bem, devemos perguntar: quando uma norma pertence ao ordenamento e se torna válida perante o Direito? Qual requisito deve ser preenchido para dar validade jurídica a uma norma?

Tércio Sampaio Ferraz Júnior apresenta alguns doutrinadores que buscaram uma resposta à indagação. Sob o ponto de vista da semântica, ou seja, analisando-se um signo e seu significado, podemos considerar a norma como um signo e o comportamento nela previsto como significado. A norma, para tais doutrinadores, será válida caso o comportamento nela previsto se concretize na sociedade.

Uma norma que estabeleça ser proibido estacionar em um local será válida, conforme tal ponto de vista, caso seja obedecida e as pessoas não estacionem seus automóveis no ponto indicado. Por outro lado, essa norma será inválida caso as pessoas não a respeitem.

Tal critério de validade é mais frequente em direitos costumeiros. Uma norma costumeira somente pode ser válida perante o direito caso seja, efetivamente, seguida durante um lapso de tempo considerável. Se as pessoas não se comportarem do modo esperado, tal comportamento deixou de ser um costume e a respectiva norma perdeu a validade jurídica.

Imaginemos uma norma jurídica que punisse as pessoas que saíssem nas ruas sem chapéu, fundamentada no costume de usá-lo em ambientes públicos. A partir do momento em que se constata que o comportamento previsto pelo signo normativo não mais ocorre, deixando de ser um costume, podemos concluir: a norma perdeu sua validade. Assim, se as pessoas não saem mais de chapéu nas ruas, concluímos que a norma que obriga seu uso perdeu seu valor jurídico (sob o ponto de vista costumeiro).

O jurista Alf Ross adota uma postura, segundo Tércio, semântica, ao afirmar que a validade de uma norma jurídica depende de sua aplicação pelos tribunais. Seu critério é, em certa medida, costumeiro: a norma será válida se houver o costume de os tribunais aplicarem-na. A partir do momento no qual os tribunais não mais aplicam a norma, ela perdeu sua validade.

Tal perspectiva semântica é criticada por Hans Kelsen. Se a validade de uma norma dependesse da correspondência entre o comportamento previsto em seu texto e o verificado na realidade, nunca poderíamos saber se uma norma recém-publicada é válida ou não. Isso prejudicaria a ciência do direito.

Por exemplo, suponhamos que o Estado crie uma lei proibindo os alunos de conversar durante as aulas e estabelecendo punições para os mesmos. De acordo com a perspectiva semântica, precisaríamos de algumas semanas após a publicação da norma para avaliar se ela é válida ou não, conforme os alunos façam silêncio ou sejam punidos pela violação. Nunca saberíamos, de imediato, se a lei é válida.

A crítica e o exemplo mostram que o critério semântico pode funcionar em um direito predominantemente costumeiro, porém traz incerteza e insegurança em sistemas de direito positivo. Se a norma jurídica é criada por um ato de decisão e não deriva de comportamentos continuados, precisamos de um critério que afirme, com certeza e segurança, quando a decisão positivou uma norma válida e quando não o fez.

Kelsen apresentaria um critério, segundo Tércio, sintático, ou seja, comparando signos entre si (e considerando que a norma jurídica é um signo). Para saber se a norma é válida ou não, ele realizaria uma comparação entre normas jurídicas, verificando se há uma relação de “coerência hierárquica” entre elas.

Uma norma será válida, assim, se puder ser inserida no ordenamento jurídico. Isso significa, por seu turno, que a norma estabelece relações de coerência com outras normas superiores. Caso a norma analisada esteja subordinada àquelas superiores a ela, então será válida; do contrário, não será válida (e não será jurídica).

Em momento algum Kelsen analisa a produção de efeitos da norma jurídica. Sob sua perspectiva, tão logo uma lei, por exemplo, seja criada, poderemos afirmar cientificamente se ela é válida ou inválida. Para tanto, basta focarmos seus artigos e constatarmos se eles respeitam os limites traçados pela Constituição. Caso os artigos da nova lei respeitem as diretrizes constitucionais, constataremos que são válidos. Essa constatação será a mesma independentemente de a lei ser respeitada ou aplicada pelos tribunais.

Tércio concorda com a análise de Kelsen. Para ele, a produção de efeitos da norma jurídica consiste em sua eficácia e não em sua validade. Dizer que uma norma é válida corresponde a uma comparação realizada entre normas jurídicas e não entre a norma e a realidade social. Mas ele vai além, instaurando outro critério para averiguação da validade, o critério pragmático.

Considerando a norma enquanto fenômeno comunicativo, ela é criada por um emissor dotado de um grau qualquer de autoridade. Somente emissores dotados de autoridade podem criar normas (possuem o poder para criá-las). No caso da norma jurídica, esse poder deve estar respaldado pelo Estado, transformando-se no grau máximo de autoridade institucionalizada.

Dizer que uma norma é juridicamente válida significa, assim, constatar que a norma foi criada por uma autoridade reconhecida pelo Estado ou pelo Poder Constituinte Originário. Uma norma jurídica contratual será válida, pois, caso as pessoas que celebraram o contrato tenham autoridade reconhecida pelo Estado para fazê-lo (simplesmente dizemos que o contrato foi celebrado por pessoas capazes). Já uma lei, por sua vez, será válida caso seja elaborada pelo órgão com autoridade reconhecida pelo Poder Constituinte Originário para fazer leis (diremos, no caso, que o órgão é competente).

A validade de uma norma, assim, depende, em primeira instância, da transferência de autoridade. Essa transferência, contudo, costuma ser condicional e limitada. Tais aspectos materializam-se na validade formal e material, como veremos.

Uma autoridade superior, em geral, estabelece condições para constituir uma autoridade inferior, dela derivada. Assim, por exemplo, o Estado estabelece os requisitos para que uma pessoa receba a autoridade (o poder) para criar normas jurídicas sentenciais. Tais requisitos conferem competência à pessoa e a transformam em um juiz de direito. Noutro exemplo, podemos afirmar que o Estado estabelece condições para que as pessoas possam exercer a autoridade (o poder) que recebem, a nascer, para celebrar contratos. Em outras palavras, é necessário que a pessoa seja absolutamente capaz.

Além dessas condições ligadas à pessoa, a autoridade pode estabelecer requisitos quanto ao modo como o ato deve ser praticado pela autoridade inferior. Quando uma lei é elaborada pelo Congresso Nacional, há a necessidade de se seguir estritamente os passos de um processo, sem o qual a norma tornar-se-á inválida. Quando um contrato é celebrado, por sua vez, há a necessidade de as manifestações de vontade serem livres e conscientes, sob pena de invalidade do mesmo.

Verificar se houve o respeito às condições para a transferência de autoridade leva à análise da validade formal das normas jurídicas. Se todos os requisitos estabelecidos pela autoridade superior foram observados, então podemos afirmar que, formalmente, houve a transferência de autoridade (poder) para a criação de uma norma válida.

Nenhuma autoridade, como já vimos, é ilimitada. E toda transferência de autoridade se faz mediante condições e limitações. Se as condições estabelecem requisitos para a criação da norma, as limitações estabelecem um direcionamento para seu conteúdo. A autoridade superior que transferiu poder à autoridade inferior espera que a norma criada por esta seja capaz de conduzir a sociedade para a concretização de determinados valores.

Neste momento, falamos em validade material. A norma, para ser válida, além de ser criada por uma autoridade capaz/competente, deve permitir a concretização de determinados valores sociais. Saberemos se a norma concretiza tais valores a partir de uma minuciosa análise de seu conteúdo, verificando se seu texto não cria contradições com as normas já criadas pelas autoridades superiores.

Nesse momento, relacionamos o texto da norma com o texto de todas as outras normas jurídicas preexistentes, sobretudo com aquelas de hierarquia superior. Concluiremos que a norma analisada é válida se puder ser alocada nesse conjunto (o ordenamento) sem causar conflitos de significados com as demais normas superiores, ou seja, sem gerar antinomias.

Sob o ponto de vista pragmático, portanto, uma norma será juridicamente válida caso a autoridade que a criou tenha preenchido todos os requisitos pessoais e procedimentais para receber, da autoridade jurídica superior (Poder Constituinte Originário/Estado), o poder de criar normas (capacidade/competência)  e tenha exercido esse poder dentro dos limites previamente determinados por tal autoridade superior, conforme estabelecido em seu ordenamento jurídico. Então, observadas as condições e limitações, a norma criada fará parte do Direito.

Referências:

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão e Dominação. 6ª edição. São Paulo: Atlas, 2008. (4.3.1.3)

 

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