Dinâmica do ordenamento: revogação e caducidade

Se a sociedade contemporânea fosse marcada pela estabilidade das relações sociais e pela imutabilidade, talvez pudesse ser regulada exclusivamente pelos costumes, não havendo a necessidade da criação de normas jurídicas legislativas. Mas isso não ocorre.

A marca de nossa sociedade é a constante busca pela novidade e pela transformação. As relações sociais não se mantêm estáveis ao longo dos anos. Se pensarmos nas últimas décadas, muitas foram as mudanças. Tal situação inviabiliza o recurso a normas jurídicas costumeiras. E também exige que as normas jurídicas legislativas estejam em constante atualização.

Os ordenamentos precisam, portanto, prever mecanismos para sua atualização, como a possibilidade de criação de novas normas válidas e de desaparecimento de normas que se tornam defasadas. Já abordamos, indiretamente, a criação de normas jurídicas ao tratarmos das fontes e do início da vigência. Vejamos como as normas jurídicas desaparecem, permitindo uma dinâmica ao direito positivo.

Uma norma deixa de ser jurídica quando perde sua validade, ou seja, não mais pertence ao ordenamento. Em tese, a perda de validade pode ocorrer de duas formas: 1. revogação, ou seja, uma nova norma retira a validade de norma anterior; 2. ineficácia, ou seja, uma norma que durante certo período de tempo não é aplicada pelo Estado e respeitada pela população deixa de ser considerada válida.

A maioria dos sistemas jurídicos de origem romana opta pela primeira das possibilidades, reservando a segunda a situações excepcionais. No Brasil, o art. 2º da LID estabelece a regra da revogação, afirmando que uma lei terá vigência (e será válida) até que outra a modifique ou revogue.

Para não haver dúvidas, o parágrafo 1º especifica que a lei posterior revoga a lei anterior “quando expressamente o declare”, por incompatibilidade ou “quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.

A primeira revogação é chamada de expressa, pois depende de determinação literal da nova lei. Podemos apresentar o exemplo do novo Código Civil, que traz uma cláusula de revogação em seu penúltimo artigo: “Art. 2.045. Revogam-se a Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916 – Código Civil e a Parte Primeira do Código Comercial, Lei no 556, de 25 de junho de 1850″.

A revogação por incompatibilidade ocorre quando duas normas são contraditórias, existindo uma antinomia. Se uma das normas conflitantes for superior (a Constituição, por exemplo) e outra for inferior (uma lei ordinária), prevalece a superior, revogando-se a inferior. Por outro lado, se ambas forem de mesma hierarquia, então a norma mais recente prevalece ante a mais antiga e a norma especial prevalece, nas situações especiais, ante a geral (trataremos de antinomia noutra postagem).

A terceira revogação é chamada de global. Suponhamos que seja criado um Código dos Contratos Civis. Por descuido do legislador, ele silencia sobre o tópico de mesmo tema no Código Civil. Por ser lei mais recente, podemos considerar que revogue, globalmente, tal tópico.

Embora as três hipóteses de revogação continuem previstas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, publicada em 1942, precisamos apontar um problema: o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal determinou que fosse criada uma lei complementar para tratar da elaboração de leis em nosso país. Essa lei complementar é a n. 95, de 1998, que determina, em seu art. 9º, a obrigatoriedade da revogação expressa: “a cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas”.

Assim, após 1998, toda nova lei criada em nosso país, quando for incompatível com normas contidas em outras leis, deve indicar expressamente quais revoga, sob pena de descumprir determinação da Lei Complementar n. 95/98. Isso obriga o legislador a ser mais cuidadoso, checando todas as normas jurídicas existentes em nosso Estado, antes de propor um novo projeto de lei. Em tempos de internet e pesquisa digital de conteúdos, essa exigência é perfeitamente concebível. Também não se admite mais a revogação expressa feita de modo genérico: “revogam-se as disposições em contrário”.

Todavia, em virtude da inflação legislativa, levando à existência de mais de doze mil leis brasileiras posteriores a 1945, e do tradicional descuido de nosso legislador, pode haver incompatibilidades entre normas jurídicas legais que passem despercebidas no momento de criação de nova lei, a qual não as revoga expressamente. Nesse caso, surgirão antinomias e aplicar-se-á o parágrafo primeiro do art. 2º da LID.

Uma lei criada em 2010 pode determinar, em um artigo, que o comportamento X é permitido. Antes dela, podemos imaginar que houvesse outra lei, de 2000, com artigo determinando que o mesmo comportamento X é proibido. Por descuido, em 2010, o legislador não revogou expressamente o artigo da lei de 2000. Haverá, por incompatibilidade, uma revogação tácita.

Destacamos que a revogação tácita precisa ser demonstrada por quem a alega. Essa demonstração exige que se especifique quais as normas jurídicas incompatíveis, provando que são contraditórias. Para tanto, aconselha-se o recurso ao argumento de autoridade, citando-se a opinião de doutrinadores e da jurisprudência.

Não podemos esquecer que a norma jurídica revogada perde a validade e a vigência, deixando de fazer parte do ordenamento. Porém, isso não significa que ela perca o vigor, pois pode conservar força obrigatória em situações consolidadas durante sua vigência, como o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido.

Quanto à abrangência da revogação, ela pode ser total ou parcial. Ocorre revogação total, também chamada ab-rogação, quando uma lei, por exemplo, revoga integralmente outra, não preservando a validade de qualquer artigo da mesma. A revogação parcial, ou derrogação, ocorre quando nova lei revoga apenas alguns artigos da lei antiga, preservando-se a validade dos demais.

Uma lei A, pois, possui dez artigos. Haverá ab-rogação se uma lei B revogar todos esses artigos; se um ou alguns deles não for revogado, terá ocorrido a derrogação.

Embora a regra no direito brasileiro seja da perda de validade de uma norma jurídica por revogação, podemos constatar que há, ao menos, uma hipótese de perda de validade por ineficácia. O citado art. 2º da LID apresenta essa exceção: trata-se do caso da lei temporária.

Lei temporária é aquela que, quando publicada, apresenta um prazo ou uma condição para o término de sua validade. Sua existência, diferentemente das demais leis, que são permanentes, é efêmera. Ela somente será vigente durante um período certo de dias ou durante um acontecimento cujo final pode ser certo ou incerto.

Podemos citar como exemplo uma lei que estabeleça a duração de sua vigência por um número de dias ou até uma data precisa. Também será temporária a lei que vigorar durante um evento, como a Copa do Mundo, ou uma situação qualquer, como uma epidemia ou uma guerra.

A lei temporária não perde a validade por ser revogada por outra, mas por disposição própria, determinando que sua eficácia cessará automaticamente após a situação prevista. Ocorrida a situação, dizemos que houve a caducidadeda lei. Caducidade, assim, significa a perda da validade de uma lei por superveniência da situação fática ou temporal prevista.

Dois outros casos envolvendo a perda de eficácia de uma norma podem ocorrer: o desuso e o costume negativo. Nosso ordenamento não prevê a hipótese de perda de validade em virtude desses casos.

O desuso envolve a percepção, por parte dos cidadãos, de que a norma não possui mais eficácia fática, pois, dadas as transformações sociais, os fatos considerados por ela permitidos, proibidos ou obrigatórios não mais ocorrem. Uma norma jurídica que proíbe a alimentação de cavalos em áreas gramadas urbanas faria sentido no século XIX, mas é vista como em desuso no século XXI, pois as pessoas não mais utilizam tal animal como meio de transporte.

O costume negativo, por seu turno, ocorre com normas que possuem eficácia técnica e fática, mas não são respeitadas pelos cidadãos nem aplicadas pelas autoridades estatais. Um exemplo é o “jogo do bicho”, modalidade de loteria proibida pela lei porém existente em muitas cidades brasileiras.

Em termos técnicos, nem o desuso nem o costume negativo revogam a norma jurídica. Mas, em um caso concreto, a aplicação dessa norma poderia causar uma sensação de injustiça. Caberia ao advogado da pessoa injustiçada defender a tese de que, ainda que seja considerada válida, a norma em questão não deveria ser aplicada.

Finalizamos constatando que o direito brasileiro é dinâmico, havendo a previsão de que uma nova norma jurídica pode revogar normas anteriormente válidas, modificando o conteúdo do nosso ordenamento. Além disso, normas temporárias perdem a validade automaticamente após um prazo ou um acontecimento, caducando.

Referências:

DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 16ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011. (art. 2º)

FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão e Dominação. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2003. (4.3.2.1)

 

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